terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Ou vai-te: o pirangueiro



Por Raphael Carmezim

Voar. Voar tépido e adejo – pendurado – por um fio de “serol” – 030 ou 010 – pulsante (lá sei vai a cabeça do motoqueiro!).
Copular com o vento, planar no firmamento, mais perto do Astro-rei.
Ostentar sua beleza de tecido, plástico, cartolina, seu rabo viperino, para todos da abóbada celeste tecida, granjeando pensamentos (olhares) sobre os seus movimentos.
E quando se fizer senhor: lutar, lutar e lutar, pois não tem raça mais nobre. A covardia passa onde? O pirangueiro vira chiste. Num vôo rasante, numa cambalhota cadenciada, por cima, por baixo, mede as forças com seu inimigo, e depois de um cumprimento válido de cabeça, sai-lhe levando os fios de vida que lhe tecem as Parcas.
Assim corre-se, num breviário de herói mítico e antológico, a existência das pipas, arraias, rabiolas, pandorgas, papagaios, curicas, candulas, tonel, cometas, pajáras, barréis, kites and pipes; cujos nomes os são, como os nomes dos Mitos, representantes de um aspecto irredutível de sua existência multifacetada.
Pois as pipas somos nós e muito mais no céu. Os velhos avatares, xamâns, de épocas montanhosas, estão lá, são elas, suas consciências e suas gingas, seu samba-rock aéreo, pois que no ar toda a história (e todo sonho) está revolvida (e revolvido) pelo vento.
Querer paganismo, querer religião mais telúrica que a das pipas? Elas se amam e se odeiam no espaço de um átimo de segundo, e ao mesmo tempo em que se acasalam visceralmente pelos rabos pavoneantes (cortando-se e aparando-se), se matam e se cortam; se imobilizam num vórtice de cola, vidro e energia cuspida, quedando-se inermes, entregando-se ao Uno espasmódico do Ser, sendo todo esse rito mediado pela mão vibrante, o olhar terrífico e o esforço orgástico da Criança.
E que espetáculo é a derrota (derrota?) destes seres alados! São espíritos que derivam dos nossos espíritos. É a sociedade desejada, que, mais por gracejo e covardia do que por qualquer outra coisa, preferimos projetar no céu, onde as coisas são claras e eternas, onde, dizia o alemão empinador de pipa: “para quem sofre, é uma alegria esquecer o próprio sofrimento”: coisas do delírio humano.
Talvez por isso, em temporada de pipa, salpique-se mais o céu dos pobres do que dos ricos, pois que uma criança pobre prefere perder-se no céu, imaginar-se voando, sem fome ou coisa que lhe valha, sem memória, imaginando-se caindo nas águas de Além-Mundo, no qual poderia alçar mais vôos e conhecer mais Firmamentos.
Mesmo derrotada (derrotada?), a pipa não sofre, pois morre com honra, e sabe que irá voltar, depois do Hades (e o inferno somos nós sim!) e pelas mãos de um sacerdote qualquer, viverá com as nuvens por outra pipa, amiga e inimiga que lhe espelhe a consciência pelo céu.
Assim diziam os velhos de outrora: eu subscrevo.
Assim discursou o velho empinador ao moleque empinador, e este sem entender nada, fez uma cara de engulho e continuou a subir sua rabiola tricolor pensando que nunca ia beber quando ficasse velho.
- Vê lá seu Chico, vô pegá aquela curica. Olha só... ela tá baxando...Vai penoso!

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