sexta-feira, 23 de julho de 2010

Pensadores do Pará (1º Capitulo)


Por Raphael Carmezim.

Sempre é um momento oportuno de prestar homenagens aos nossos intelectuais conterrâneos, os quais, em certa medida, serão sempre nossos mestres e precursores. Belém Revisited oportuniza, desta feita, aos nossos amigos internautas, a leitura de textos, poemas, ensaios, discursos e dizeres de nossos mais festejados homens de humanidades, enraizados em nossa região por natureza ou destinação.
Inauguramos a sessão com a aula inaugural, o momento inolvidável, do nosso “Mestre dos Magos” preferido e famigerado, grande amigo do Borges afeiçoado! Falo de Benedito José Viana da Costa Nunes, vulgo Benedito Nunes, mais vulgo ainda, Bené. O discurso foi feito em vias de recebimento do título de doutor honoris causa do homem na Cátedra da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bené recebeu recentemente da Academia Brasileira de Letras (ABL) o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra, tendo sido internado, no dia do recebimento do prêmio, em instituição hospitalar por problemas de pressão. O texto que se segue foi dividido em três partes, que serão postadas uma vez por mês. Aproveite a prosa galante do “autodidata dos pés à cabeça”, como ele mesmo se define!

QUASE um plano de aula (Parte I)
“ ‘Neste momento inolvidável...’, assim começaria eu se fosse fazer um discurso, na acepção vulgar de comovida peça oratória, fofa e balofa, que me desgosta, embora aprecie o Padre Vieira – mais o das cartas que o dos sermões, aparentemente fofos e balofos sermões, no entanto escritos com as galas todas disponíveis da língua portuguesa do século XVII. Gosto de dar aulas, mas não me proponho a entediar-vos. Habituado, porém, a preleções ordenadas, segundo um procedimento que desde cedo adotei no ensino, fingirei, nessa alocução rememorativa a ser-vos apresentada, pois que ela é memória com prolongamentos analíticos e críticos ao final, que estou obedecendo a um plano de aula. Poderia ser: 1 – Filosofia no Ginásio; 2 – Como aprendi a dar aulas ou, ainda, como comecei a ensinar; 3 – Autodidatismo e formação; 4 – Meus patronos, pais espirituais (não se usava, outrora, o termo hinduísta de guru) – e muitos outros tópicos ilustrativos, exemplares, esclarecedores sem muita acrimônia e, às vezes, divertidos, expostos um tanto a esmo, ao ritmo oscilante do pensamento e da recordação.
Mal terminei o curso ginasial, convidou-me o professor Augusto Serra a dar aulas de Filosofia no Colégio Moderno, onde eu estudara de 1941 a 1948, e do qual era ele diretor e proprietário. Que me seja permitido dividir com Augusto Serra, o Serrão – e com tantos outros que irei mencionando -, o título que hoje me conferis. Essas pessoas, quase todas mortas, continuam a mim aliadas de várias maneiras; alguma elejo meus patronos, pais espirituais que encarnaram cada qual de per si, para o autodidata que ainda sou, a figura do mestre por mim sempre buscado; as que ainda vivem foram e são amigos, no sentido próprio, isto é, companheiros de existência.
Filho único, menino ensimesmado, na amorável companhia de seis tias maternais, procurava e estimava a convivência dos vizinhos de minha idade, a maioria pertencendo à particular estirpe, muito difundida áquela época, dos pequenos serviçais de cabeça raspada (teriam muitos piolhos, dizia-se), empregados, sem remuneração, para trabalhos domésticos nas outras casas da Gentil Bittencourt próximas às nossas, quando não brincava com os moleques independentes dos grandes cortiços próximos, como a Jaqueira, um conjunto de minúsculos quartos de madeira, onde habitavam lavadeiras, cozinheiras, pequenos artesões, desocupados, escroques, pedreiros e trabalhadores em geral – O Lumpenproletariat desse período. Mas inclinei-me, desde cedo, à relação com pessoas mais velhas, como vereis.
De família remediada muito católica, minha mãe sonhava pôr-me a estudar o ginasial nos Maristas, cujas mensalidades não lhe eram acessíveis. Procurou-os, certo dia, para pedir-lhes, nesse momento, exibindo-me ao padre, que então nos recebeu, como aluno aplicado, uma vaga gratuita. O benefício caridoso foi-nos negado para decepção da expectativa cristã de minha mãe. Entretanto, Augusto Serra, reputado ateu (e ele não era senão, como vim a saber mais tarde, um descendente do positivismo à Littrè), ofereceu-me, por intermédio de seu irmão Osvaldo – o Serrinha –, nosso vizinho, ambos sendo excelentes matemáticos, a vaga gratuita almejada, no Colégio Moderno, onde, durante sete anos, eu e outros colegas na mesma situação, bem mais pobres do que eu, fomos estudantes de pleno direito, sem qualquer espécie de discriminação, como a que havia, então, nos colégios religiosos para órfãos, órfãs e assemelhados.
Fui representante de classe, presidente do Grêmio e, de certo modo, líder dos colegas estudantes. Com o Serrão, tinha longas conversas litero-filosóficas nos fins de tarde. Franqueou-me a biblioteca do estabelecimento, até aquele momento fechada, e que viria a organizar e administrar em nome do Grêmio: livros, em sua maioria, em francês e inglês. Pela primeira vez, li de cabo a rabo, um texto em francês de autor inglês: o Ivanhoé, de Walter Scott, um dos primeiro alumbramentos literários, depois de As Caçadas de Pedrinho e as Memórias de Emília, de Monteiro Lobato ou o Robin Hood, em tradução do mesmo Lobato – alumbramentos que continuaria a proporcionar-me a Odisséia de Homero, vertida do grego para o português, por Carlos Alberto Nunes, meu tio, que morava em São Paulo, com que partilho as honras do meu título...

domingo, 11 de julho de 2010

Texto 2


Por Josy Llopes

Do alto da escada o sol brilhava, porém estava frio. Ele circundava a xícara de chá com as mãos. Estava sozinho. Admirava-se de seu autocontrole. Acreditou ser o homem mais completo do mundo por alguns segundos. Ergueu-se na escada, o sol ia-se lentamente. Sentiu-se traído por ele. Enfureceu-se. Bebeu o chá. Sentiu-se confortável novamente. Desejava fazer o coração parar de bater, estava tão concentrado que só podia ouvir as batidos do próprio coração. Achou-se louco, riu-se. Tinha coração, tinha cérebro, tinha coragem e estava em casa. “O que pedir à Oz?”, brincou. Pensou em livros e concluiu que não era possível lê-los todos antes de morrer. Pensou na morte e em olhos negros. Viu-se pequeno no mundo, viu-se grande comparado às formigas nas laterais da escada. Pensou nos sinos, no padre que executava a tarefa de fazê-los avisar a hora da missa. Pensou em beber um oceano, em fazer parte de algo maior que a própria vida. Pensou no som que as árvores emitem quando estão secas e em contato com o vento e comparou-o ao som de sua vida, ele que tinha tantas coisas mas não sabia o que de fato lhe servia. Gostava das imagens que estavam guardadas em sua memória, mesmo as imagens tristes, sentia-se vivo, tinha lembranças. Lembrou-se de que ser bobo era uma forma instigante de viver. Refletiu sobre a problemática das borboletas desaparecidas e lembrou-se nunca ter cultivado uma flor. Tinha contas e seus credores o esperavam, o que fazer? Pensou ainda nas cenas que presenciara: um homem tinha fome, uma criança também. Ele não tinha fome, pararia de comer para se descobrir feliz. Lembrou-se então do natal, da família. Após as festas eles se iam. Nunca estavam lá, mesmo quando estavam. Diagnosticou loucura à sua exclusiva paciente: a precisa alma. Queria partir-se em mil pedaços de vidro e entrar nos corpos dos homens para saber do que eram compostos. Não aceitava a idéia da carne e ossos, o homem deveria ter algo a mais, talvez um pouco de monstro, um pouco de cordeiro, queria ver o que estava sob aqueles patéticos corpos. Bebeu o chá até o último gole, espreguiçou-se e desceu as escadas. Foi assistir TV e comer pipocas. Era mais fácil.

Texto 1


Por Josy Llopes.

Guiomar levantava-se cedo. Abria as janelas um pouco envergadas e soltava os cabelos negros como uma sala de visitas vazia. Penteava-os com a habilidade de uma velha costureira. Devotava os olhos negros no céu, nas pedras ou no balanço das árvores. Sentia-se vazia num caleidoscópio de olhares, de vida e cheiros. Vez ou outro aparecia-lhe um amigo: “vamos, Guiomar! A praia está cheia e o mar tão alegre... só falta você!” Porém a moça respondia com um leve balançar de cabeça. Imaginava Guiomar aonde estava Antônio, seu amor. Certamente num bar, ouvindo samba e bebendo do falso néctar de outros braços. Desciam-lhe pela face lágrimas salgadas que recordavam-na do sal dos beijos de Antônio quando jantavam no churrasco do canto da rua e trocavam carícias. Guiomar de olhos tristes via seu amor sem dinheiro, indubitavelmente voltaria cedo ou tarde. Na estante os retratos de uma época de delírio: abraçavam-se sorrindo, num parque de diversões. Compartilhavam uma maçã-do-amor tão doce de ter aversão. Momentos fugazes. A janela abria-lhe as portas de um mundo vasto, entretanto castigava-lhe a espera, a demora. Esperava um amor que não vinha. Eis que passa um mulato, dize-lhe elogios baratos, ovos de paixão que aquecem-se e nascem amor. Optou descer mais uma vez, dizendo ser a última vez, a avenida.

Baseado na música “Ela e sua janela”, de Chico Buarque.