sábado, 20 de fevereiro de 2010

Ucrânia Revisited



Por Filipe Oliveira

Como internacionalista que sou sempre tive interesse pelo Leste Europeu, seja pela sua suntuosa trajetória histórica e cultural ou por sua importância estratégica para a Europa, e um dos países que mais me desperta atenção é a Ucrânia, que atualmente se encontra em um impasse político pela sucessão presidencial.
Classificada como pertencente aos países do Segundo Mundo por Parag Khanna (2008) *1, a Ucrânia sempre esteve no dilema quanto ao seu papel geopolítico: se seria a fronteira do império russo rumo a Europa (como a própria etimologia da palavra ‘Ucrânia’ em russo sugere *2) ou uma ponte entre a Europa e a Rússia.
Sua posição estratégica, longe de ajudar, tem sido uma sina para o povo ucraniano e parece se refletir em muitos aspectos daquele povo. Divida pelo rio Dnieper, este país carrega duas partes distintas dentro de um mesmo território: a porção católica e agrícola do oeste e ortodoxa e industrializada do leste.
Mesmo na parte mais desenvolvida do país ainda há uma forte carência de modernização industrial e melhoramento da infra-estrutura, que misturada com a alta concentração de renda compromete o desenvolvimento do país. Ademais, a aglutinação de investimentos estrangeiros na capital e grande atuação de bazares que comercializam através de escambos, a margem de toda e qualquer tributação, são alguns sintomas de uma economia fragilizada. Para se ter uma idéia, uma parte considerável da população depende da remessa de mais de 3 milhões de ucranianos que vivem na Europa Ocidental.
Por outro lado a fragilidade das instituições democráticas se reflete na política do país, que apresenta uma incongruência quanto aos objetivos e projetos políticos desenhados para a Ucrânia.
Leonid Kuchma que permaneceu no poder por 10 anos (1994-2004) manteve o que Khanna (2008) e Way (2005) chamam de Soft Autoritarism , bem ao modelo da Ásia Central, com restrições a liberdade de imprensa e algumas brechas democráticas.
Seu indicado à sucessão presidencial Viktor Yanukovich, pró-russo, concorreu com Viktor Yuchenko, líder da oposição. Durante as eleições Yuchenko foi envenenado com dioxina, porém conseguiu sobreviver ao atentado. A oposição acusou os russos de terem planejado o ato.
No auge do conflito entre as forças de segurança de Kuchma e manifestantes a favor de Yuchenko, a população saiu as ruas com bandeiras cor de laranja, assegurando deste modo a anulação do resultado pela Suprema Corte e a convocação de novas eleições . O evento ficou conhecido como Revolução Laranja.
No entanto o que parecia ser o alvorecer de um governo de mudança foi na realidade a continuação dos problemas enfrentados pelo país. Yuchenko colocou pessoas despreparadas para altos cargos no governo e não conseguiu realizar as reformas constitucionais no país. Para piorar, a situação econômica ucraniana se agravou, aprofundando ainda mais as contradições sociais do país.
Nas eleições realizadas no início deste ano a rejeição popular a Yuchenko se revelou nas urnas, uma vez que conseguiu apenas 5% dos votos. O segundo turno foi disputado pela empresária e pró-ocidental Yulia Tymochenko, que permaneceu no cargo de primeira-ministra até 2005, e pelo candidato pró-russo Viktor Yanukovich. Este ganhou por 49% contra 45,5% de Tymochenko.
Agora a ex-primeira ministra recorre à Suprema Corte contestando o resultado das eleições, que segundo ela foram fraudulentas. Apesar disso, a OSCE (Organização de Segurança e Cooperação na Europa),que também inclui União Européia, EUA e Rússia, alega transparência durante o processo eleitoral.
De todo modo, o novo governante terá importantes desafios durante sua gestão especialmente na dissolução de gabinetes paralelos, rompimento de monopólios, saneamento do sistema bancário, geração de empregos, dentre outros, para que o país possa sair da sombra dos russos e se beneficiar com uma possível entrada no bloco europeu e os subseqüentes investimentos da UE.
Ao que tudo parece, este ainda permanece sendo um sonho um tanto distante, uma vez que muitos países da comunidade européia temem perder grande parte dos seus subsídios agrícolas que seriam destinados à superação da enorme dependência agrícola ucraniana. Ademais a grande maioria da população deste país é jovem, o que pode proporcionar uma avalanche de trabalhadores da Ucrânia para os demais países do bloco. Por enquanto só nos resta aguardar pelos próximos capítulos e torcer para que os brados de glória e liberdade entoada no hino nacional ucraniano voltem a sorrir à nação dos Cossacos.



NOTAS
1.Khanna define os países de segundo mundo como Estados importantes geopoliticamente para o equilíbrio de poder entre as superpotências do século XXI, EUA, União Européia e China, e que possuem características distintas dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos.
2.No idioma oficial Ucrânia significa “pátria” enquanto que na língua russa esta palavra significa “terra de fronteira” (KHANNA, 2008)

*Para ler mais sobre os países do Segundo Mundo leia “O Segundo Mundo” de Parag Khanna da Editora Intrínseca, 559 pgs.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Em busca do tempo perdido


Por Patrick Brandão

“Durante muito tempo costumava me deitar cedo. Às vezes mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar; adormeço, e, meia hora depois despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela. Durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões haviam assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro, uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V...”
É assim que começa “No caminho de Swann”, de Marcel Proust, o primeiro volume do magnífico romance “Em busca do tempo perdido”. Esse é o começo da grande viagem pelos caminhos do coração, o caminhar na estrada da busca da memória afetiva e suas veredas infinitas. A partir de “No caminho de Swann”, encontraremos inúmeros personagens vivendo histórias de amor, inveja e ciúmes, na França da Belle Époque, com uma narrativa constituída de detalhes que passam ao painel e do painel ao detalhe, sem fazer projeções definidas, e no constante reajuste de algo que nunca será perfeitamente ajustado. No momento em que “caminharmos” nos caminhos de Swann, encontraremos cenas e figuras memoráveis de soberbos personagens, cheios de vida interior que nos impressionam a cada atitude. Marcel Proust costumava definir sua obra como uma catedral em processo de construção, pois, apesar do processo rigoroso de construção, fica sempre inacabada por causa dos detalhes que devem ser acrescentados ao longo do tempo, e assim foi em sua obra, já que seu projeto inicial incluía somente três volumes, mas a obra foi crescendo por suas exigências, e a cada revisão da obra havia um novo acréscimo.
Tal como um poema, não conseguimos resumir a história sem o prejuízo da mesma, tal o feitio das frases, a modulação das vozes, a inteligência do texto de Marcel Proust. “Em busca do tempo perdido” faz com que mergulhemos no esplêndido retrato da sociedade de uma época, entramos no universo da burguesia francesa, conhecendo as divergências entre nobres e burgueses, e essas são apenas algumas satisfações que teremos em nossa leitura, mas há muito mais nesses caminhos. “Em busca do tempo perdido” é um grande exercício de memória, aonde uma recordação gera outra. Imaginemos um dia qualquer de nossas vidas já distante, um dia com os amigos, na praia. Quais eram as cores desse dia? Qual a consistência da areia em nossos pés? Com quem conversamos, e qual foi o assunto? A análise que Proust faz de todas essas coisas consideradas “perdidas” é impressionante. Com uma riqueza de detalhes, Marcel Proust nos leva àqueles dias distantes que supostamente esquecemos, e assim se dá a epifania; a reconstituição minuciosa de um tempo passado não no exterior, mas dentro da própria mente, trabalhando o fluxo de consciência de forma magistral.
Em “No caminho de Swann” que é constituído de três partes: na primeira parte, a ação passa-se na fictícia e mítica cidade de “Combray”, vemos a infância do Narrador, suas recordações da cidade, despertadas por Madeleine, sua aflição nas noites à espera de um beijo de despedida da mãe, a descoberta dos dois lados, ou caminhos, da cidade que, para ele, além de opostos, são caminhos inconciliáveis; o caminho de Swann e o caminho de Germantes. Na segunda parte, “Um amor de Swann”, Proust analisa o amor e o ciúme masculino através da relação de Charles Swann e Odette de Crécy. Na terceira parte “Nomes de Lugares”, o Narrador começa a descobrir a magia que oculta-se através dos nomes das pessoas e das cidades, vemos os brinquedos do Narrador com Gilberte, filha de Swann e Odette, e depois, sua admiração pelos pais dela, principalmente pela Sra. Swann. Em “À sombras das raparigas em flor”. O lirismo é a característica principal. O Narrador já adolescente, começa o livro narrando um jantar em família onde o convidado de honra é o diplomata Norpois. Comenta-se à mesa acontecimentos de Estado, arte e o fato de o rapaz ter ido à peça Fedra com a atriz Berma, alter-ego de Sarah Bernhardt, que ele sonhara tanto ver no palco e que afinal o decepcionara. E a decepção com o tudo o que é idealizado é muito forte nesse romance. O adolescente conhece as moças do “pequeno grupo”, na estância balneária de Balbec, local onde passa suas férias; fica tremendamente apaixonado por uma delas, chamada Albertine, integra-se ao grupo. Nesse momento, Proust começa a esboçar os temas subseqüentes da obra, prefigurando os dramas que aparecerão em livros futuros. Em “Sodoma e Gomorra”, o Narrador penetra no universo infernal da inversão sexual, tanto masculina (Sodoma), quanto feminina (Gomorra), e pela primeira vez aborda o tema do amor homossexual, e também examina a forma destrutiva do ciúme sexual, mostrando certas conseqüências que sofrem certos indivíduos que padecem desse problema. O Narrador começa a pensar em livrar-se de Albertine, mas acaba amando-a cada vez mais, e tenta impedi-la de ser contaminada pelo mundo de depravações, mantendo-a seqüestrada em sua companhia. Em “A prisioneira”, enfoca a vida em comum entre o narrador e Albertine. Uma relação amorosa cheia de contradições, onde coexistem o ciúme mórbido, avassalador e exclusivista, e também, a total indiferença. Em contrapartida, ele é incapaz de se libertar da obsessão por Albertine, e ao mesmo tempo enfastiado pela sua presença, ele sabe que tudo está perdido e, sem querer admitir a separação, mantém Albertine virtualmente prisioneira. Porém, Albertine retira-lhe das mãos o poder de decidir sobre o destino de ambos. É um magnífico estudo das relações desenvolvidas entre homem e mulher. “A fugitiva” é a continuação, e não narra propriamente a fuga de Albertine, pois, com ela encarcerada simboliza o desejo de posse do ser amado, e narra a mágoa do Narrador pelo abandono, e de muitas coisas que acreditava. Em “Tempo Redescoberto”, encontramos o retrato da corrupção trágica de todas as coisas, ou seja, pessoas que o Narrador julgava amar voltaram a ser simplesmente nomes, como outrora, tudo o que foi buscado e acreditado havia se desfeito, e a vida não passava de tempo já desaparecido.
A obra de Marcel Proust é extensa e muito gratificante, cercada de detalhes que dão vida a todos os personagens e lugares citados nos romances, e essa é uma característica marcante em sua obra. O cuidado, a análise, a memória, e sua dedicação a literatura. Proust nasceu em Auteuil, Paris, em 10 de julho de 1871. Foi uma criança de saúde frágil, e precisou de muitos cuidados durante toda a sua infância. Freqüentou o Lycée Condorcet entre 1882 e 1889, e alistou-se como voluntário em um regime de infantaria. Ingressou na École dês sciences politiques. Preparava-se para seguir carreira diplomática, mas desistiu de tudo, a fim de dedicar-se exclusivamente à literatura. Suas primeiras experiências literárias datam de 1892, quando com alguns amigos, fundou a revista Le Banquet. E também passou a colaborar em La Revue Blanche, freqüentando ao mesmo tempo os salões aristocráticos parisienses, e os que foram, em grande parte, um ótimo laboratório para coletar material para seus romances. Com a morte da mãe em 1905, torna-se herdeiro de uma fortuna razoável e isola-se cada vez mais dos meios sociais para dedicar-se exclusivamente para a sua obra “Em busca do tempo perdido”, que foi publicado entre 1913 e 1927. Marcel Proust morreu em Paris em 18 de novembro de 1922, deixando um legado importantíssimo para a posteridade.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Balada de Frederico


Por Raphael Carmezim

Soneto à Federico

Torpes gemidos vagueiam e gritam
Ao som da gaita minhota galega
Desafinadas, sangrentas veredas
Deixam Granada “Asquerosa” e vibram

Nos corpos, cópulas: vates e tísicos
Os fuzilados pagãos, torpes réprobos
Do Céu: o Deus nacional com seus méritos
Fazem do homem delírios de místicos

Mas onde está o cancioneiro gitano?
E esse marulho de balas e choros?
É um cheiro pútrido: secos antolhos
Espatifados pelas mãos de Franco

Ò Federico! Teus restos encerram
O Paraíso ao enjeitado homem
Aos que não tem coragem e fome
Para viverem seus mortos que velam

Á Andaluzia a poesia com memória
Vate cigano; sangrento punhal
Grandes errantes perseguem tua Nau
No Firmamento de versos de glória


Ao saber da forma que morreu Garcia Lorca, não pude deixar de transmutar tudo num panorama estético. Morrer sob a égide de um governo centralizador certamente por “subversão” ou simples antipatia, significa mais do que política (e isso ainda mais no caso do Poeta): significa a morte pelo que se é. Garcia - não apolítico - mas político humanista, o que transcende coalizões partidárias, programas de governo e correlatos. De fato, ele tornou-se um símbolo apropriado pela propagando falangista: foi martirizado. E quão inconcebível é a um poeta morrer na fogueira fitando o céu, com sorrisos de profeta. Lorca sabia de duendes, de cosmogonias, de universos que cabiam entre folhas de vasos nos quintais das casas; com aranhas nos vitrais sacros, com conversas no remanso das ervas. Penso que Lorca poderia ter pensado em uma formiga mais do em Deus, e isso seria suficiente para amar a vida, a fim de viver, a fim de suplicar aos assassinos a piedade mesma dos homens que esmagam formigas sem saber. E Lorca sumiu. Voltou à terra que lhe dera tantos versos e, embora cegado, gosto de pensar que sentiu o “tembror de estrellas” de que tanto cantou. A “vaguedad” e a melancolia própria dessa Ibéria Mística, da Granada “Paraíso cerrado para muchos”, da gente que ama o diminuto por ver nele o seminal; fez-me lavrar um soneto a fervor de Federico e tudo o mais que inspira: a sofreguidão estética dos que unem expressão artística e vida.
Decidi pelo soneto chamado de Gaita Galega ou moinheira, pouco utilizado, mas assaz tempestivo na ocasião. Elisões (sinalefas, sineréses) e adições (predominantemente diaréses) foram feitas para “enfiar” os versos em decassílabos com tônicas obrigatórias na 4º, 7º e 10º sílaba poética. Espero ter conseguido um sucesso lírico no sentido também de evocar uma imagem tão presente nos versos lorquianos, a saber, os ciganos (gitanos). A tentativa de reconstituir um pouco o episódio da noite do assassinato em versos obrigou-me a, além do soneto, compor quartetos decassílabos no formato moinheira, é claro que compartilhei alguns versos entre um e outro: o soneto é tributário do meu quarteto de gaita Galega! A princípio pensei em escrever uma ode, mas a principio também tinha em mente escrever outra coisa: algo como Lorca não desaparecido, mas enfim num mundo onde seu lirismo e metáforas gongóricas se tornassem realidade. Fica para próxima. Quem quiser pode tecer críticas, afinal eu já estou odiando esse soneto mesmo.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Diante da Morte



Por Raphael Carmezim


Diante da Morte nenhum cão ladra! Ela é a maldita ladra que não rouba, mas toma de volta, pois que se assenhoreia sem ninguém contestar (e nem que tenha foro privilegiado!). Nos escaninhos da Inominável, da Língua Preta (que tem tantos nomes), todos voltam à Igualdade sócio-econômica; o que deveria deixar-nos a nós, republicanos, democratas e civilização, tranquilíssimos. Certo? Não.
Diante da Morte se vê cada comportamentozinho oblíquo, cinzento, digo estranho mesmo. Como no jornal de hoje. Como é de praxe, algum caboclo assassinou-se (digo isso porque ele foi assassinado, mas tava andando trêbado de madrugada num lugar chamado Rua da Morte...) e estava estampando uma notícia jornalística e sanguinolenta de primeira página.
Seu cadáver obtuso, grosseiro, de gente trabalhadora, aparecia todo sequelado, arreganhado, moído e, por fim, morto, com os olhos injetados abertos como as mãos em atitude defensiva.
O negócio poderia ser assaz “normal” se não fosse um piazinho, moleque mesmo destes de bairro de gente espontânea, vergado sobre o presunto com um cell phone tirando uma foto, com close e tudo, na lata do sujeito.
Ta certo que é criança, e destas que já viram muitos mortos, e que nem a Morte escapa do lúdico e da boa curiosidade é certo também; mas que diabos é isso de tirar uma foto do sujeito estendido no chão?
Acrescem-se os adultos em volta, tipo roda de cirandar, como se o presunto tivesse pagando alguma prenda (cara por sinal); não que ele reclame, afinal, tá morto! E quando vivo não davam nem ouvido(deram foi facada!). Sem falar que o cadáver nem morrer de morte privada morre, pois que vai parar nos Orkuts e nos Youtube da vida. Eu também não reclamo, mas reflito sobre esses fenômenos que, mesmo “normais”, são interessantes.
Parece que morte é que nem sexo: é um acontecimento ritualizado que até hoje traz suas reminiscências de ritos de passagem. No nosso caso - tradição judaico-cristã - abominam-se os dois: sexo ou morte, mas em termos relativos, pois que se nem todos querem morrer ou trepar, todos querem dar uma espiadinha e fazer algumas perguntas.
Talvez por isso sejam tão populares escândalos sexuais seguidos de morte! Mas cogitações à parte, bem que nós temos um lado frenesi com a mardita. Se a morte encerra o temor, encerra a atração, a estranheza, o mistério. A cara de um morto deve ser um enigma universal, com sua pétrea formação multicor, inchada, plácida, preguiçosa.
Digo “deve” porque eu já vi moribundo, mas nunca vi morto. Nem sei o porquê falo destes, ou de seus espectadores, afinal, se a galera vê é porque alguma coisa deve ter de bom: ficar lá, vendo o fedor surgir, as gentes chorarem, os sintomas da morte pelo corpo; pode ser que nem sexo, se todo mundo faz é porque alguma coisa tem de bom, ou pode ser como um sexo que não se fez... Uma brochada. Será que as pessoas se identificam com o cadáver por ele ser um alguém “dessexualizado”? Sabe como é... p*** de morto não levanta... E convenhamos, aqui no Brasil, na verdade, até morto acaba numa boa sacanagem.
O engraçado (se há graça nisso) é que se suspeita de que o homem morto do jornal tivesse acabado de sair, em altas noites, de um inferninho...

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

História do Bené e do Borges na biblioteca Estrela




Por Raphael Carmezim

Pelas ruas da Estrela
Conheci um velho castanho
Que entre pencas de livros
Tinha o brilho dos d’antanho
Era o velho desejado
Dos saberes, sacrossanto.


Sua casa era um Aleph
Do Borges afeiçoado
Da Babel era errante
Nos Moldes dos desgraçados
Era a Sabedoria
Que lhe andava no encalço


A sua Biblioteca?
Thomas Mann mais sanatório
Era a “Montanha-Mágica”
Universo-palavrório
Esse era o Benedito
Com seus ares de filósofo


Sentado em sua poltrona
Balouçava com o amigo
Era Borges do outro lado
Parolando sobre mitos
De universos paralelos
Espelhos de tempos idos.


Labirinto dos achados
Era Hora da Estrela
Misturados, englobados
Estava Sertão Veredas
Era a obra Roseana
A Clarice eira nem beira


Um cego que ensaia o conto
Que recita os ingleses
Um velho que escreve a vida
Críticas que fazem às vezes
Da Estética nortista
À Cosmogonia dos seres


Eu ouvi os dois falarem
Línguas nunca dantes vistas
Será que era a Orbe?
Cunhada pelo artista:
“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”
Lá, nasceu e ganhou vida.


Atmosfera sinistra
Explodiu-se num rosário
Estante-eternidade
De círculo sacrário
Eles acharam o seu duplo
No infinito breviário


Entre sonhos memoráveis
De segredos inauditos
Fulgurava a besta-fera
Que abismava aos amigos
Um montava em seu dorso
Outro o honrava como Cristo


Era o Tigre imponente
De sonho rememorado
Por filósofo ensaísta
Por crítico-literário
Bené e Borges passadiços
Nos saberes mais velados.


Juntos por fim se ingeraram
Em saber o enciclopédico
Do ovo do basilisco
Á “Passagem para o poético”
Do eterno “livro de areia”
Ao fraseado da Lispector


Esses são Bené e Borges
Na Biblioteca Estrela
No universo incandescente
No céu que nos incendeia
História mais erudita
De uma prosa tão perfeita


Ao tempo em que fui cantando
Me dei por mais outro livro
Mais um da Biblioteca
Por Bené e Borges lido
Quando fui ver o que era
Era eu cantando o mito


Depois eles penduraram
Tudo na grande Babel
Eu olhei tão pequenino
Eles me olharam do céu
Me apontaram, os dois sorrindo,
A Poesia de Cordel.

Ou vai-te: o pirangueiro



Por Raphael Carmezim

Voar. Voar tépido e adejo – pendurado – por um fio de “serol” – 030 ou 010 – pulsante (lá sei vai a cabeça do motoqueiro!).
Copular com o vento, planar no firmamento, mais perto do Astro-rei.
Ostentar sua beleza de tecido, plástico, cartolina, seu rabo viperino, para todos da abóbada celeste tecida, granjeando pensamentos (olhares) sobre os seus movimentos.
E quando se fizer senhor: lutar, lutar e lutar, pois não tem raça mais nobre. A covardia passa onde? O pirangueiro vira chiste. Num vôo rasante, numa cambalhota cadenciada, por cima, por baixo, mede as forças com seu inimigo, e depois de um cumprimento válido de cabeça, sai-lhe levando os fios de vida que lhe tecem as Parcas.
Assim corre-se, num breviário de herói mítico e antológico, a existência das pipas, arraias, rabiolas, pandorgas, papagaios, curicas, candulas, tonel, cometas, pajáras, barréis, kites and pipes; cujos nomes os são, como os nomes dos Mitos, representantes de um aspecto irredutível de sua existência multifacetada.
Pois as pipas somos nós e muito mais no céu. Os velhos avatares, xamâns, de épocas montanhosas, estão lá, são elas, suas consciências e suas gingas, seu samba-rock aéreo, pois que no ar toda a história (e todo sonho) está revolvida (e revolvido) pelo vento.
Querer paganismo, querer religião mais telúrica que a das pipas? Elas se amam e se odeiam no espaço de um átimo de segundo, e ao mesmo tempo em que se acasalam visceralmente pelos rabos pavoneantes (cortando-se e aparando-se), se matam e se cortam; se imobilizam num vórtice de cola, vidro e energia cuspida, quedando-se inermes, entregando-se ao Uno espasmódico do Ser, sendo todo esse rito mediado pela mão vibrante, o olhar terrífico e o esforço orgástico da Criança.
E que espetáculo é a derrota (derrota?) destes seres alados! São espíritos que derivam dos nossos espíritos. É a sociedade desejada, que, mais por gracejo e covardia do que por qualquer outra coisa, preferimos projetar no céu, onde as coisas são claras e eternas, onde, dizia o alemão empinador de pipa: “para quem sofre, é uma alegria esquecer o próprio sofrimento”: coisas do delírio humano.
Talvez por isso, em temporada de pipa, salpique-se mais o céu dos pobres do que dos ricos, pois que uma criança pobre prefere perder-se no céu, imaginar-se voando, sem fome ou coisa que lhe valha, sem memória, imaginando-se caindo nas águas de Além-Mundo, no qual poderia alçar mais vôos e conhecer mais Firmamentos.
Mesmo derrotada (derrotada?), a pipa não sofre, pois morre com honra, e sabe que irá voltar, depois do Hades (e o inferno somos nós sim!) e pelas mãos de um sacerdote qualquer, viverá com as nuvens por outra pipa, amiga e inimiga que lhe espelhe a consciência pelo céu.
Assim diziam os velhos de outrora: eu subscrevo.
Assim discursou o velho empinador ao moleque empinador, e este sem entender nada, fez uma cara de engulho e continuou a subir sua rabiola tricolor pensando que nunca ia beber quando ficasse velho.
- Vê lá seu Chico, vô pegá aquela curica. Olha só... ela tá baxando...Vai penoso!