terça-feira, 3 de agosto de 2010

QUASE um plano de aula (Parte II)



Por Raphael Carmezin

“(...) Carlos Alberto Nunes, já falecido em Sorocaba, em 1994, com mais de noventa anos, impossibilitado por uma total cegueira de realizar seu último projeto – a tradução das cartas latinas de Erasmo – enviou-me, de São Paulo, anos a fio, romances ingleses e franceses, tratados de filosofia e livros de divulgação científica, hoje inestimáveis peças de minha biblioteca. Nos anos 70, quando era Reitor Aloysio da Costa Chaves, doou à UFPA os direitos autorais sobre o gigantesco trabalho por ele empreendido durante dez anos: a tradução completa de Platão, editada por essa Universidade durante três administrações, entre 1973 e 1980, em 11 volumes. Além disso, ofertou à sua biblioteca livros de e sobre Platão em várias línguas, particularmente em alemão – enfim, uma rica platoniana, a que não faltavam os originais manuscritos de tradução que fizera. Alongamo-nos sobre esse assunto, não porque queiramos propor à Universidade que, na base desse acervo, inicie um novo programa de preparação de helenistas. Apenas faço ver ao Magnífico Reitor a necessidade de reeditar a tradução completa de Platão, de há muito esgotada. Onde quer que vá em minhas perambulações para conferências, na Universidade do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, de Santa Catarina, em Florianópolis, do Paraná, em Curitiba, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, em Belo Horizonte, da Paraíba, em João Pessoa, ou na Universidade de São Paulo, onde quer que vá, é a mesma pergunto que ouço: ‘Quando é que a Universidade Federal do Pará reedita Platão’?
É certo que, não faz muito, ela se preparou para fazê-lo. Mandou revisar todos os volumes publicados; escoimados foram os erros, extirpadas as gralhas, organizados índices naqueles que contêm mais de um diálogo, e esse exaustivo trabalho de revisão entregue no tempo devido. Mas depois disso, não mais se ouviu falar no Platão, embora tivesse chegado à Universidade vantajosa proposta de coedição. Ignora-se, até, o paradeiro dos volumes.
Ali onde comecei a dar aulas, no Moderno, também aprendi a ensinar. É o que tenho feito na vida: aprender a aprender. Sou autodidata dos pés à cabeça. No caso da aprendizagem das línguas foi diferente. Com seu vozeirão, a cabeleira de um branco fosco, Dona Hermenegilda Tavares Cardoso, a Dona Velha, temida no quarteirão, sem papas na língua, de uma franqueza arrebatada, que administrava a sua enorme casa em estilo art noveau na Padre Prudêncio, atual Presidente Pernambuco, e estudava as línguas vivas, ensinou-me o francês também de graça. Denodada mulher, a quem designo como professora emérita: passava os dias preenchendo, com sua bela letra, cadernos como os que me dava, que continham listas de sinônimos e antônimos em francês, então, por excelência, o idioma instrumental da expressão cultural dos indivíduos, médicos e bacharéis em Direito, como os meus primos Hall de Moura, Ribamar, Sylvio e Levi, que viviam sob a sombra tutela de tia Angelina, numa casa modesta da Rui Barbosa.
A casa da Tia Angelina era a última da rua e a rua acabava rente a um capinzal onde vacarias prosperavam. De sua sala pequena, com uma estante ao canto, perto da janela, guardando os livros de meus três primos, bacharéis em Direito e magistrados, fazia meu refúgio durante alguns dias da semana, pela manhã, ao sair do colégio. Ali, naquela estante, encontrara edições francesas de a Crítica da razão pura e de O mundo como vontade e representação, além de L’évolution créatrice de Bergson, da Felix Alcan, exibindo na folha de rosto assinatura de Dalcídio Jurandir, seu ex-proprietário. De vez em quando chegava-me o cheiro das vacarias espalhadas no meio do capinzal, quase sempre ondulado pelo vento. O odor de estrume, da bosta de boi, entre vegetal e animal, um dos melhores e mais fortes cheiros, como ouviria, mais tarde, de Mário Faustino, e o gosto do guaraná solúvel Sórbilis, infalivelmente servido em cada uma dessas visitas, associaram-se à descoberta do caráter a priori do espaço e do tempo na Estética transcendental de Kant. Um dos primos, Ribamar, a mim se afeiçoou.
Estatura mediana, cabelos lisos, os olhos miúdos, mongólicos, como de muitos caboclos da região, bem moreno, mas com uma tez baça de hindu, os lábios finos cortados por leve sorriso numa cara gorducha de Buda, as mãos pequenas, Ribamar antecipava-me a clássica descrição de Sócrates por Alcebíades que leria no Banquete: a desgraciosa imagem de um Sileno. ‘Feio, és muito feio’, ouvi uma vez dizer-lhe de cara o professor de latim do então Ginásio Estadual Paes de Carvalho, Remígio Fernandez, um espanhol alto, de espessas sobrancelhas. E no seu tom lambanceiro, que havia rotinizado o insulto no tratamento de alunos e colegas, completou a apóstrofe chamando-o de Príncipe Encantador. Talvez o extravagante espanhol, que tinha lá as suas humanidades, se lembrasse, usando desse epíteto, Príncipe Encantador, de duplo sentido aplicado a quem o dirigiu, da imagem do Sileno, feio por fora e belo por dentro. No paralelo de Alcebíades, a figurinha exterior é um engodo: destapada, via-se, no bojo, a estátua de um deus. Ribamar deu-me a ver, pela primeira vez o homem por trás do indivíduo e o humano (ou o divino) por trás do homem.
Saiu de sua comarca para o posto de juiz de Direito, em Macapá. Lá teve um acesso de uremia. Ouvi contar que delirou numa audiência, proclamando, de chofre, com as palavras de Jesus em defesa da mulher adúltera, a inocência da acusada no processe em julgamento.
Depois da Odisséia e da Ilíada, veio o tempo da comoção estética abalada, com a leitura de Les misérables de Victor Hugo, primeiro em português, e depois no original, graças ao dadivoso Orlando Bitar, que me confiou (ele foi meu professor de latim no segundo ano ginasial) o catatau de uma edição gigante, letras douradas na capa e nas lombadas, profusamente ilustrada. Eis aí um dos amigos mais velhos, que me ensinou a aprende; o pouco do latim que ainda sei, devo à sua maneira de ensinar, familiarizando o aluno com os tempos primitivos buscados nos dicionários. Dava-se portanto, que certos professores tornaram-se meus amigos, valendo igualmente afirmas, na proposição inversa, que determinados amigos meus, como o Ribamar, tornaram-se meus professores, no sentido amplo da palavra. Não faltará nesta precária, lista da equiparação entre mestre e amigo, o nome de Maria Anunciada Chaves, uma ligação afetiva e intelectual de muitos anos, professora minha que foi, no Moderno, de História Geral e História do Brasil, com a particularidade de ter sido, para mim, como Orlando Bitar, um modelo vivo de didática. Nenhum dos dois, ao que sei, freqüentou cursos de didática. Aprendi a ensinar a duras penas – a ensinar e a ensinar-me...”

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Pensadores do Pará (1º Capitulo)


Por Raphael Carmezim.

Sempre é um momento oportuno de prestar homenagens aos nossos intelectuais conterrâneos, os quais, em certa medida, serão sempre nossos mestres e precursores. Belém Revisited oportuniza, desta feita, aos nossos amigos internautas, a leitura de textos, poemas, ensaios, discursos e dizeres de nossos mais festejados homens de humanidades, enraizados em nossa região por natureza ou destinação.
Inauguramos a sessão com a aula inaugural, o momento inolvidável, do nosso “Mestre dos Magos” preferido e famigerado, grande amigo do Borges afeiçoado! Falo de Benedito José Viana da Costa Nunes, vulgo Benedito Nunes, mais vulgo ainda, Bené. O discurso foi feito em vias de recebimento do título de doutor honoris causa do homem na Cátedra da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bené recebeu recentemente da Academia Brasileira de Letras (ABL) o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra, tendo sido internado, no dia do recebimento do prêmio, em instituição hospitalar por problemas de pressão. O texto que se segue foi dividido em três partes, que serão postadas uma vez por mês. Aproveite a prosa galante do “autodidata dos pés à cabeça”, como ele mesmo se define!

QUASE um plano de aula (Parte I)
“ ‘Neste momento inolvidável...’, assim começaria eu se fosse fazer um discurso, na acepção vulgar de comovida peça oratória, fofa e balofa, que me desgosta, embora aprecie o Padre Vieira – mais o das cartas que o dos sermões, aparentemente fofos e balofos sermões, no entanto escritos com as galas todas disponíveis da língua portuguesa do século XVII. Gosto de dar aulas, mas não me proponho a entediar-vos. Habituado, porém, a preleções ordenadas, segundo um procedimento que desde cedo adotei no ensino, fingirei, nessa alocução rememorativa a ser-vos apresentada, pois que ela é memória com prolongamentos analíticos e críticos ao final, que estou obedecendo a um plano de aula. Poderia ser: 1 – Filosofia no Ginásio; 2 – Como aprendi a dar aulas ou, ainda, como comecei a ensinar; 3 – Autodidatismo e formação; 4 – Meus patronos, pais espirituais (não se usava, outrora, o termo hinduísta de guru) – e muitos outros tópicos ilustrativos, exemplares, esclarecedores sem muita acrimônia e, às vezes, divertidos, expostos um tanto a esmo, ao ritmo oscilante do pensamento e da recordação.
Mal terminei o curso ginasial, convidou-me o professor Augusto Serra a dar aulas de Filosofia no Colégio Moderno, onde eu estudara de 1941 a 1948, e do qual era ele diretor e proprietário. Que me seja permitido dividir com Augusto Serra, o Serrão – e com tantos outros que irei mencionando -, o título que hoje me conferis. Essas pessoas, quase todas mortas, continuam a mim aliadas de várias maneiras; alguma elejo meus patronos, pais espirituais que encarnaram cada qual de per si, para o autodidata que ainda sou, a figura do mestre por mim sempre buscado; as que ainda vivem foram e são amigos, no sentido próprio, isto é, companheiros de existência.
Filho único, menino ensimesmado, na amorável companhia de seis tias maternais, procurava e estimava a convivência dos vizinhos de minha idade, a maioria pertencendo à particular estirpe, muito difundida áquela época, dos pequenos serviçais de cabeça raspada (teriam muitos piolhos, dizia-se), empregados, sem remuneração, para trabalhos domésticos nas outras casas da Gentil Bittencourt próximas às nossas, quando não brincava com os moleques independentes dos grandes cortiços próximos, como a Jaqueira, um conjunto de minúsculos quartos de madeira, onde habitavam lavadeiras, cozinheiras, pequenos artesões, desocupados, escroques, pedreiros e trabalhadores em geral – O Lumpenproletariat desse período. Mas inclinei-me, desde cedo, à relação com pessoas mais velhas, como vereis.
De família remediada muito católica, minha mãe sonhava pôr-me a estudar o ginasial nos Maristas, cujas mensalidades não lhe eram acessíveis. Procurou-os, certo dia, para pedir-lhes, nesse momento, exibindo-me ao padre, que então nos recebeu, como aluno aplicado, uma vaga gratuita. O benefício caridoso foi-nos negado para decepção da expectativa cristã de minha mãe. Entretanto, Augusto Serra, reputado ateu (e ele não era senão, como vim a saber mais tarde, um descendente do positivismo à Littrè), ofereceu-me, por intermédio de seu irmão Osvaldo – o Serrinha –, nosso vizinho, ambos sendo excelentes matemáticos, a vaga gratuita almejada, no Colégio Moderno, onde, durante sete anos, eu e outros colegas na mesma situação, bem mais pobres do que eu, fomos estudantes de pleno direito, sem qualquer espécie de discriminação, como a que havia, então, nos colégios religiosos para órfãos, órfãs e assemelhados.
Fui representante de classe, presidente do Grêmio e, de certo modo, líder dos colegas estudantes. Com o Serrão, tinha longas conversas litero-filosóficas nos fins de tarde. Franqueou-me a biblioteca do estabelecimento, até aquele momento fechada, e que viria a organizar e administrar em nome do Grêmio: livros, em sua maioria, em francês e inglês. Pela primeira vez, li de cabo a rabo, um texto em francês de autor inglês: o Ivanhoé, de Walter Scott, um dos primeiro alumbramentos literários, depois de As Caçadas de Pedrinho e as Memórias de Emília, de Monteiro Lobato ou o Robin Hood, em tradução do mesmo Lobato – alumbramentos que continuaria a proporcionar-me a Odisséia de Homero, vertida do grego para o português, por Carlos Alberto Nunes, meu tio, que morava em São Paulo, com que partilho as honras do meu título...

domingo, 11 de julho de 2010

Texto 2


Por Josy Llopes

Do alto da escada o sol brilhava, porém estava frio. Ele circundava a xícara de chá com as mãos. Estava sozinho. Admirava-se de seu autocontrole. Acreditou ser o homem mais completo do mundo por alguns segundos. Ergueu-se na escada, o sol ia-se lentamente. Sentiu-se traído por ele. Enfureceu-se. Bebeu o chá. Sentiu-se confortável novamente. Desejava fazer o coração parar de bater, estava tão concentrado que só podia ouvir as batidos do próprio coração. Achou-se louco, riu-se. Tinha coração, tinha cérebro, tinha coragem e estava em casa. “O que pedir à Oz?”, brincou. Pensou em livros e concluiu que não era possível lê-los todos antes de morrer. Pensou na morte e em olhos negros. Viu-se pequeno no mundo, viu-se grande comparado às formigas nas laterais da escada. Pensou nos sinos, no padre que executava a tarefa de fazê-los avisar a hora da missa. Pensou em beber um oceano, em fazer parte de algo maior que a própria vida. Pensou no som que as árvores emitem quando estão secas e em contato com o vento e comparou-o ao som de sua vida, ele que tinha tantas coisas mas não sabia o que de fato lhe servia. Gostava das imagens que estavam guardadas em sua memória, mesmo as imagens tristes, sentia-se vivo, tinha lembranças. Lembrou-se de que ser bobo era uma forma instigante de viver. Refletiu sobre a problemática das borboletas desaparecidas e lembrou-se nunca ter cultivado uma flor. Tinha contas e seus credores o esperavam, o que fazer? Pensou ainda nas cenas que presenciara: um homem tinha fome, uma criança também. Ele não tinha fome, pararia de comer para se descobrir feliz. Lembrou-se então do natal, da família. Após as festas eles se iam. Nunca estavam lá, mesmo quando estavam. Diagnosticou loucura à sua exclusiva paciente: a precisa alma. Queria partir-se em mil pedaços de vidro e entrar nos corpos dos homens para saber do que eram compostos. Não aceitava a idéia da carne e ossos, o homem deveria ter algo a mais, talvez um pouco de monstro, um pouco de cordeiro, queria ver o que estava sob aqueles patéticos corpos. Bebeu o chá até o último gole, espreguiçou-se e desceu as escadas. Foi assistir TV e comer pipocas. Era mais fácil.

Texto 1


Por Josy Llopes.

Guiomar levantava-se cedo. Abria as janelas um pouco envergadas e soltava os cabelos negros como uma sala de visitas vazia. Penteava-os com a habilidade de uma velha costureira. Devotava os olhos negros no céu, nas pedras ou no balanço das árvores. Sentia-se vazia num caleidoscópio de olhares, de vida e cheiros. Vez ou outro aparecia-lhe um amigo: “vamos, Guiomar! A praia está cheia e o mar tão alegre... só falta você!” Porém a moça respondia com um leve balançar de cabeça. Imaginava Guiomar aonde estava Antônio, seu amor. Certamente num bar, ouvindo samba e bebendo do falso néctar de outros braços. Desciam-lhe pela face lágrimas salgadas que recordavam-na do sal dos beijos de Antônio quando jantavam no churrasco do canto da rua e trocavam carícias. Guiomar de olhos tristes via seu amor sem dinheiro, indubitavelmente voltaria cedo ou tarde. Na estante os retratos de uma época de delírio: abraçavam-se sorrindo, num parque de diversões. Compartilhavam uma maçã-do-amor tão doce de ter aversão. Momentos fugazes. A janela abria-lhe as portas de um mundo vasto, entretanto castigava-lhe a espera, a demora. Esperava um amor que não vinha. Eis que passa um mulato, dize-lhe elogios baratos, ovos de paixão que aquecem-se e nascem amor. Optou descer mais uma vez, dizendo ser a última vez, a avenida.

Baseado na música “Ela e sua janela”, de Chico Buarque.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Próxima Estación: Esperanza !


Por Raphael Carmezim.

Quando me perguntam quem é Manu Chao, eu respondo: é um artista, um músico! Quando me perguntam que tipo de musica ele faz, eu respondo: dub...reggae...ritmos caribenhos...na certeza de quem nem eu sei ao certo o que é aquilo. De fato, Manu Chao está naquelas categorias “líquidas” (lembrando do sociólogo polaco Bauman)do artista “perdido nel siglo XX”), própria da estética do nosso século.
Basta entrar na página oficial do artista (http://www.manuchao.net/) e sentir a toada da “amalucada vida”, o “vento que vien e que se vá”, um mundo “viramundo”, que comemora as amarguras, as tristes esperanças, a “sharp politic”, a insatisfação dos povos, das culturas (“Che cosa vuoi dá-me...que cosa vuoi ancora...que cosa vuoi de piú).
Manu Chao esteve em Belém recentemente, trazendo uma mensagem que permeia toda a sua obra: “La resignación és un suicídio permanente”, talvez herança de uma juventude Manonegrista, permeada pelo punk franco-londrino, rockabilly espanhol, prédicas anárquicas, panegíricos de outras formas de coletividades e de relacionamentos com os povos e a natura. Seus shows lembram mesmo as T.A.Z’s de Hakim Bey, reunindo povos de tantas estratificações possíveis que esvaziam-se os espaços de poder, dissolvendo-se tudo na massa pastosa, anterior ao Deus de Mennochio.
De corações desérticos como a Sibéria, à honradez dos heróis futebolísticos (La vida és una tômbola Maradona, e a loteria começa dia 13!); do canto da Pachamama que se põe a chorar, às prostitutas das “calles” de coração de alquilar, das horas que batem no coração em todos os cantos do mundo, aos pequenos planetas (“L'univers est trés grand avec plein d'étoiles ! Et ces petites étoiles sont brillantes,elles sont gentilles, elles sont sympatiques si vous les aimez...”) que rutilam nos olhos de quem vê. É bom ouvir um artista que pensa a vida em uma perspectiva antropológica tão válida, qual seja, como bem se expressou a Profª. Ana Paula em palestra na UFPA: uma constante esquizofrenia.
Agora Manu Chao está flertando com o nosso carimbó, se diz grande admirador do trabalho de nosso Pinduca. Em seu show disse não saber espanhol, não saber português...sabe apenas portunhol. De fato Manu Chao sabe das misturas, mix, mezclas, mixages, mescolanzas, e ninguém como ele consegue, de tal forma, a partir de nossas diferenças, nos fazer filhos de uma mesma estirpe, condenados a “nunca llegar”, mas a mensagem está dada: “La muerte es um regreso que tendrá que esperar, poi yo voy pra frente, deste mundo demente, e a cada dia eu lucho para não decaer”. ESPERANZA LATINO AMERICA, ESPERANZA VIRAMUNDO! Vivamos pois, a feira de mentiras!: http://www.manuchao.net/manuchao/a-feira-das-mentiras/index.php?p=23

Referências:
BAUMAN, Zigmunt . Modernidade Líquida; tradução, Plínio Dentzien. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001
Palestra: Direito e Antropologia: desafios, encontros e desencontros. Ana Paula Schritzmeyer.
CHAO, Manu. Letras. Maio.2010. Disponível em http://letras.terra.com.br/manu-chao/. Acesso em 31 de maio de 2010

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Anna Karenina Revisited.


Por Filipe Oliveira.

Leon Nikolaievitch Tolstói foi um homem maior que a vida. Suas façanhas são tantas, que tentar falar de todas em um espaço de tempo tão curto é uma tarefa difícil. Tolstói nasceu em Iasnaia Poliana, cidade a 160 km ao sul de Moscou no ano de 1828 em uma família muito rica. Seus pais morreram quando ele era criança, e por conta disso teve que viver com sua tia. Durante sua infância e adolescência, teve uma educação privilegiada e foi com seu professor particular alemão chamado Ressel que ele adquiriu o gosto pela leitura.
Tolstói entrou para a universidade, mas não chegou a se destacar como aluno, então acabou abandonando o curso de direito e se alistando nas forças armadas, chegando inclusive a lutar na Guerra da Criméia (1853-1856). Quando voltou da guerra passou a publicar histórias sobre a guerra, sua infância e a sociedade russa, sendo aclamado pelo público e pela crítica.
Anna Karenina é o seu romance mais famoso. Ele conta a história do relacionamento entre Anna Karenina, uma mulher casada com um influente homem de São Petesburgo, Alieksei Alieksandrovic, com Alieksei Vronski, um importante militar. Ao longo da história podemos conhecer os costumes da sociedade russa através do cotidiano de inúmeros personagens como Liêvin Ivanovitch, Stiepan Arcadievitch, Katierina Tchierbatskaia, Sviájski, dentre outros. O autor consegue traçar um perfil psicológico profundo dos personagens e utiliza isso para criticar muitos dos costumes da época.
De todos os personagens retratados no livro, Anna Karenina, sem sombra de dúvida, é a personagem mais intrigante. Sua bela aparência física aliada ao seu charme singular e o seu posicionamento moral perante a sociedade petersburgesa passam paulatinamente a dar lugar a uma mulher excessivamente ciumenta e insegura, vivenciando um terrível estado mental de ódio, miséria e desprezo, vendo repulsa em todos e tudo que a cerca.
Assim, diante do desespero que se encontrava e da sua falsa certeza do desprezo que o seu amante lhe tinha, Anna não viu outra solução que não o suicídio. Ela então desce até a linha dos trens, sendo atropelada poucos segundos depois.
Este suicídio, ao meu ver o ponto alto da obra, mereceu algumas análises sociais e psicológicas, das quais merecem destaque a tese de conclusão de curso de alunos de psicologia da Faculdade Ruy Barbosa, utilizando como pressuposto teórico as obras de Fernanda Bruno, Michael Foucault, Serge Moscovici, David Myerrese, dentre outros.
Segundo o estudo, Anna Karenina sofreu uma forte coerção da sociedade a partir do momento em que deixa de observar os padrões de comportamento estabelecidos para se lançar em uma aventura extraconjugal. Deste modo, a estrutura social e seu mecanismo de manutenção da subjetividade individual são alterados.
Nesse sentido, a análise de Foucault baseado no modelo do Panóptico se faz importante para o entendimento da situação de Anna Karenina. Segundo Bruno (2004) o Panóptico é:
“A arquitetura circular, as celas individuais dispostas em anel e a torre central atendem ao princípio de dissociação do par ver-ser visto (...) Da torre central, onde deve se instalar a vigilância, a transparência é total – todas as celas, todos os indivíduos nelas alojados são perfeitamente visíveis; o olho central tudo vê. Das celas, ou nada se vê ou se é furtado da decisão sobre o que se vê (....)”
A partir do momento em que interpretamos o Panóptico como a sociedade, com o seu olhar perscrutador sobre o indivíduo, percebemos a força de sua alteridade no que tange a internalização das normas propagadas e na formação da identidade de cada indivíduo.
Quando Anna deixa de seguir o que foi socialmente e privativamente (por meio da auto-vigilância do comportamento) convencionado como normal, esta sociedade passa a agir através da coerção social, que pode ser exercida de inúmeras formas.
Este processo, só possui força a partir do momento em que o indivíduo que sofre a ação passa a se identificar com os rótulos difundidos a seu respeito. Como foi muito bem exposto na tese, Anna, que já se sentia culpada pela relação que vinha tendo com seu amante, passa a se identificar com as injúrias que lhe são dirigidas, conduzindo em parte os subseqüentes tormentos pelos quais a anti-heroína passa.
Os pensamentos de Anna nos capítulos que precedem sua morte corroboram a situação em que ela se encontrava. “Admitamos que eu me casasse: olhar-me-ia Kitty com menos condescendência? Não se perguntará Sierioja [o filho de Anna] por que tenho eu dois maridos? Poder-se-ão estabelecer entre mim e Vronski relações que não sejam uma tortura para mim? Não. (...) A cisão entre nós é muito profunda: eu faço-o infeliz e ele faz-me infeliz. Nada se modificaria. (Pag 302, livro II)
Assim, lhe é permitido um único ato livre para esta situação, o suicido. Independentemente das discussões sobre o significado da liberdade de ação quando se é compelido a escolher uma única opção. (MOSCOVICI apud Andrade, Matos, Alves, Matos, Coutinho, Sacramento,2007) esta tese é bastante elucidativa do funcionamento das sociedades, que desde os tempos imemoriais até o futuro infinito permanece o mesmo, apesar das mudanças das formas e condições históricas.
Fica a dica para quem tem interesse em conhecer de forma mais aprofundada um pouco do espírito do povo russo, retratada por alguém que conhecia como ninguém seus preconceitos, estereótipos, valores e crenças, tão distantes, mas ao mesmo tempo tão próximos a nós, seja no século XIX, sejam nos dias atuais.

Gene dos ruivos


Participação especial de Raphael Costa do blog Eudeviaestar.

Sentir isso é a liberdade que tenho.
Tentam me fazer acreditar que meu "eu" interno
não pode ser meu "eu" público.
Mas de certa maneira, calado, falante, porre ou sóbrio:
sou a mesma verde ervilha.
A que estava debaixo daquele seu colchão,
a que rolou para fora do pote da vovó
por não querer ser parte do molho.
Devia assim andar nu,
não para espantar, seduzir ou expressar,
devia apenas calar e sentar.
Mas o desejo da maioria não repreendeu meus anos de carteira
traseira sedenta de opinião livre.
Um dia os pequenos sardentos tem garganta,
ela é rouca e diz mais do que deveria,
e talvez mais do que gostaria.
Mas sempre é o necessário para certos pontos de vista,
de quem curte,
de quem sacrifica pela redenção
da libertação pessoal.
Eu sou o primeiro de muitos, de muitos que virão.

Rotina


Por Adílson Silva.

Hoje eu levantei bem cedo
Tomei o meu café, e me olhei no espelho.
Fiz a mesma reflexão que qualquer um faria
Novamente vai começar um outro dia

Será que vai ter alguma mudança
Algo diferente que me dê mais confiança
Com certeza não, o que é mais previsto.
Seria um bom dia maquinado com um sorriso

O mais simples é se acostumar
Deixar o tempo passar
Porque mesmo que não queiras acreditar
Amanha tudo vai recomeçar

Quem sabe alguma hora dessas
Haja uma mudança entre essas arestas
E possivelmente eu e você
Teremos algo para poder nos engrandecer

Já esta chegando o desfeche desse dia
Baterei o meu ponto e estarei de saída
Há apenas uma coisa que me inquieta
O fato de saber que amanha tudo recomeça

segunda-feira, 19 de abril de 2010

El Tío de la mina*



Tradução livre por Raphael Carmezim

Querido Tio.

Nesta fotografia, captada no interior da mina, se destaca tua estátua de argila em meio às oferendas que te deixaram os mineiros, os quais, sentados nos troncos das árvores da galeria, mascaram a coca em tua presença; suplicando-te que lhes conceda o filão mais rico de estanho e lhes proteja das enfermidades e dos perigos. As garrafas de aguardente são para aplacar a tua sede e render-te culto, bem como para celebrar os acontecimentos e cultuar a Pachamama aspergindo álcool ou cachaça sobre a Mãe Terra para essa divindade Andina que não se vê, mas que guarda as riquezas em suas entranhas.
Se te vejo de perto, escrutando os detalhes de tua imagem, vejo que tens o nariz e a boca enegrecidos pela fumaça dos cigarros, os olhos redondos como bolas de cristal, os braços ligeiramente flexionados e o corpo coberto com misturas e serpentinas. Na realidade, se falamos com propriedade, diríamos que tens o rosto mais desfigurado que o Fantasma da Ópera e o corpo mais malfeito do que de um monstro com rabo e chifres. Talvez por isso tu vivas desterrado na zona mais sombria e profunda da mina, cujas galerias não são o reino de Hades nem o inferno de Dabtes, senão um recinto tenebroso somente conhecido pelos trabalhadores do subsolo, onde os devotos te temem mais do que à Deus e os supersticiosos te veneram mais que à Virgem da Candelária.
Por outro lado, segundo a versão católica, tu és o anjo celestial que, por haver se rebelado contra a vontade suprema de teu Criador, foi condenado a sofrer um castigo eterno entre as chamas do inferno. Mas tu, que é galardoador de malefícios e benefícios, não chegaste nem sequer à porta do Purgatório; mas preferistes amalgamarte com o Huari e o Supay da mitologia Andina; fazer-te chamar Thiula e meter-te nos esconderijos da mina, em cujas trevas instalastes teu trono e teu reino. Desde então és o dono dos minerais e o amo dos mineiros, os quais, em atitude de submissa veneração, te rendem cortesias ao entrar e ao sair da mina, tributando-te folhas de coca, cigarros e garrafas de aguardente, sem maior intenção que a de te manifestar sua fé e seu carinho, e pactuar contigo a sorte de um ritual milagroso. Não obstante tu seres ambivalente, mescla de Bem e de Mal, exerces uma influência decisiva sobre a vida dos habitantes do altiplano, de onde te atrevestes a medir tuas forças satânicas com as forças divinas de Deus.
Nas vésperas de Carnaval, os mineiros colocam oferendas eu tua cova, adornam teu pescoço com serpentinas e arrojam punhados de colares e misturas ao redor do teu trono, no qual tu estás sentado, vendo como te olham o falo largo, grosso e ereto. Depois te disfarças de Lúcifer e partes da mina, com a alegria de bailar na fraternidade dos demônios, bebendo os tragos que te oferecem as gentes e namorando as raparigas mais formosas que, em honra a tua esposa perversa (La Chinasupay), se disfarçam de diabas: botinas de saltos altos, saias curtas, blusas vaidosas e delgadas e vestidos franzidos com lagartos, aracnídeos ou batráquios.
As diabas têm máscaras com olhos saltados e pestanas largas, pômulos de granada e lábios sensuais, tão sensuais que, além de esboçar um sorriso tentador, deixam entrever fileiras de dentes engastados em pedras preciosas.
Tu bailas ao compasso da música de tambores e flautas, arrastando o ar com tua capa de veludo e teu cetro de comando, enquanto as diabas, acossadas pelos ursos e condores, flertam ao redor do Arcanjo São Miguel, ensinando o contorne das pernas e cobrindo suas tetas com suas cabeleiras recolhidas em tranças.
Teu traje de Lúcifer, que parece feito de luzes e de sonhos, é uma das vestes mais invejáveis do carnaval de Oruro, onde todos te vêem e te admiram com o mais profundo espantado. Tua capa de veludo, luxuosamente bordado com fios de ouro e prata, está adornada com víboras, lagartos de dragões; tua saia e teu peitilho, salpicado de botões, lantejoulas e cristais, tem figuras ornamentadas com deslumbrante pedraria; tuas botas e tuas luvas luzem realces de sapos, aranhas e escorpiões; enquanto as calças que levas “ao colarinho”, confundindo-se com sua vasta cabeleira, são adornos que flutuam no ar como ramalhetes de flores; tua máscara, deformada até o limite do horror, tem o nariz deformado, as orelhas pontiagudas e os dentes ferozes; teus olhos, grandes e instáveis como o de um camaleão, desprendem cores vivas durante o dia e luzes fosforescentes à noite. E para infundir medo e respeito entre os seus súditos, levas uma serpente de três cabeças entre os chifres alambicados de tua testa.
Passado o carnaval, em cujo âmbito maravilhoso te entregas por completo ao baile, ao amor e ao álcool, voltas a entrar nas trevas das minas, onde não és mais o Lúcifer, senão o El Tio protetor dos mineiros. Eles consideram-te o sincretismo cultural entre a religião católica e o paganismo ancestral, não só porque és parte de uma lenda que gira em torno da mina e seus assuntos, mas também porque és um ser mítico capaz de escravizar e liberar aos homens com teus poderes mágicos.
Ainda agora, quando volto a contemplar a tua imagem, tenho a horrível sensação de que me persegues como se fosses a minha própria sombra; às vezes estás mais perto de mim que Mefistófeles de Fausto e sinto que queres fazer-me cair em tentação, induzindo-me a cometer pecados horrorosos, dos quais não me salvaria nem a morte. Assim mesmo, no misterioso labirinto dos teus sonhos, assumo a tua imagem para falar com voz de diabo, como si de verdade existisses na realidade e não somente na fantasia dos que, acossados pelo medo e pela superstição, te imaginam mais perigoso que o dragão e mais feroz que o Minotauro, metade besta e metade humano.

Texto do escritor Victor Montoya disponível em: http://www.margencero.com/montoya/montoya_tio_film.html.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Passos na chuva


Por Adílson Silva.

Lá vem a chuva cobrir tudo
Lavar as impurezas dessa terra
Restaurar o que se perdeu
E produz um novo mundo

Nela lembro-me das tristezas
Escondidas entre as lagrimas e gotas
Para que não vissem, em minha face.
As razoes verdadeiras

No meio fio em sua companhia, sentei.
Pensei na vida que passou
E me arrependi amargamente
De todas as coisas que ia fazer, mas hesitei.

Eu te conheci na tempestade
Vi seu rosto perante os ventos
Perfeitamente delineado pela água
Que até hoje me traz saudade

Mas também foi na chuva que partiste
Deixando-me a míngua
Sem qualquer explicação a dar
Escondestes na nevoa e sumiste

Mesmo assim ainda apreciarei a chuva
No entanto meus passos são lentos
O que me faz permanecer
O máximo possível em uma penumbra

terça-feira, 30 de março de 2010

Minha primeira tortura



Por Josy Llopes

Como toda criança peralta e com pouco espaço para brincar, as ruas e calçadas próximas tornam-se verdadeiros centros de idéias e brincadeiras. Para compor o cenário, uma árvore frondosa encontrava-se em frente a minha casa. Certamente você conhece os "soldadinhos" e "punha-mesas", hoje quase extintos, mas que fizeram a alegria de tantas crianças.
Éramos um grupo de três meninas. Minhas delicadas amigas não imaginavam o sofrimento a que eu submeteria aqueles pobres insetos. Enquanto elas cantavam, eu aprisionava um lindo louva-a-deus amarelo, com fios retirados de um ioiô. Caro leitor, peço-lhe piedade. Não me denuncie aos órgãos de proteção aos louva-a-deus. Fui uma criança peralta, apenas isso.
Escondi o meu tesouro em uma ponta da calçada. Ainda posso lembrar-me da cara do inseto clamando por liberdade. Resolvi impor a minha liderança. Arranquei as patas dianteiras. Aqueles olhinhos... Se pudessem falar, diriam: "Que menina má! Você pagará pelos seus pecados quando comandarmos o mundo." Depois experimentei as patas traseiras. Plinct! Plact! Foram-se duas patas. Já terminaria o serviço quando minhas amigas perguntaram o que eu estava fazendo. Não deu tempo. A mais novinha das amigas pisou no meu objeto de tortura... Tirou-lhe a vida... Eu deveria tê-lo realizado.
O meu prisioneiro evadiu com a morte! Culpei a amiga por tamanha atrocidade. Ela chorou, coitada. Eu mal sabia que a vida imporia a mim suas próprias torturas.

sábado, 13 de março de 2010

Sarajevo Revisited



Por Filipe Oliveira.

Um senhor de longos cabelos grisalhos entra na corte com um ar aparentemente relaxado e jovial, logo em seguida brinca com alguns presentes antes de tomar seu lugar no julgamento. Para algum desavisado, este poderia ser mais um caso de sonegação de impostos ou um litígio envolvendo fraude na previdência social se não estivéssemos falando de Radovan Karadzic e o local do julgamento não fosse o Tribunal Criminal Internacional para a ex-Iugoslávia (TCII).
O ex-presidente sérvio-bósnio é acusado de inúmeros crimes cometidos durante a Guerra da Bósnia (1992-1995) dos quais merecem ser mencionados assassinato, extermínio, perseguição e deportações ilegais de mulçumanos e croatas da Bósnia-Herzegovina. O episódio mais famoso do conflito foi o genocídio cometido contra os mulçumanos na cidade de Srebrenica na qual mais de 8.000 pessoas foram mortas e outras milhares feridas, por conta da política de limpeza étnica que o governo de Karadzic liderou em nome da pretensa criação da “Grande Sérvia” na região.
Além deste triste capítulo na história dos Bálcãs, ele também é lembrado por ter autorizado o ataque a população civil durante o cerco de 43 meses a cidade de Sarajevo. Estima-se que o número de mortos tenha chegado a 10.000 pessoas, sem falar no imenso número de feridos.
O processo, que se arrasta desde 2008 quando o ex-líder sérvio foi preso em Belgrado, após passar treze anos foragido, enquanto se passava por um especialista em medicina alternativa com o falso nome de Dragan Dabic, foi retomado nas últimas semanas. O acusado dispensou um advogado para sua representação na corte, preferindo que ele próprio fizesse sua defesa no julgamento.
Sua atuação perante o tribunal tem sido tênue, ora argumentando que a atuação da Bósnia durante o conflito foi “justa e sagrada”, baseada apenas no princípio da autodefesa, ora negando sua participação no conflito, dizendo que os massacres perpetrados nas duas cidades fora fruto de armação dos mulçumanos bósnios; na cidade de Srebrenica os mulçumanos teriam atirado contra si próprios e usado corpos da população local que estavam em valas para aumentar o número de mortos, e que em Sarajevo tudo não passou de uma estratégia para atrair a intervenção estrangeira por meio de tropas da OTAN.
O julgamento foi novamente adiado pelo juiz O-Gon Kwon para que se analise o recurso apresentado pelo réu para o adiamento do processo. Espera-se que desta vez a audiência tenha um resultado diferente do julgamento de Slobodan Milosevic, cancelado após a morte do líder sérvio em 2006.
Ainda que pequeno, o julgamento e a devida punição do alcunhado “Carniceiro dos Bálcãs” é um importante passo rumo à amenização dos conflitos que têm marcado a região desde o século XV.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Japonês papa chibé



Por Adílson Silva

Aproveitando a efeméride, na qual se comemorou 80 anos de imigração japonesa na Amazônia, aconteceu no Hangar Centro de Convenções e Feiras da Amazônia, o festival Matsury¹, o qual moveu mais de 15 mil pessoas em setembro do ano passado, com o objetivo de divulgar aos paraenses (que ainda não conhecem muito sobre os japoneses) os costumes e a cultura da comunidade nipônica. O evento contou com varias atrações (muitas delas internacionais) como cantores, grupos de dança, de teatro, entre outros. No entanto, para entender melhor a história da comunidade Nikkei na Amazônia, faz-se necessário também situar o momento histórico da imigração japonesa.
Basicamente o período de imigração dos japoneses no país iniciou-se no ano de 1920, período esse em que os japoneses chegam ao Brasil com esperança de melhores condições de vida, investindo primeiramente nas atividades de agricultura, principalmente na cidade de Tomé-Açu, considerada como uma das regiões mais produtivas em que os japoneses se concentram até hoje, o que os tornam responsáveis, em grande parte, pela economia do Estado. Sua principal produção era a pimenta-do-reino², além de destaque em outras áreas como mineração e na extração do setor madeireiro.
O principal fator que proporcionou o progresso traduziu-se em inovações na forma de plantio que foram estabelecidas pelos japoneses, as quais foram muito bem aceitas pelas pessoas que já habitavam a área antes deles, sem falar que essas técnicas contribuíam muito prevenção do meio ambiente, uma vez que limitavam as queimadas. As figuras históricas responsáveis pela entrada da pimenta-do-reino, a fortificação de sua produção entre outros elementos, foram: Makinossuke Ussui (que trouxe o produto para o país), Ryota Oyama Tsukata Uetsuka, (ex-deputado japonês que coordenou a imigração no Amazonas) e Hashiro Fukuhara (líder da chegada dos imigrantes no Pará)
Outra área que os japoneses se destacaram foi na fruticultura. Eles deram início a essa outra atividade por volta de 1990, sendo considerados precursores na produção de cupuaçu, açaí, mangostão e rambutã; alem de trazerem novas iguarias como noni, durian, mamão e havaí, entre outras. Apesar disso, a grande produção encontrou-se mesmo na pimenta-do-reino, que alcançou o lucro de US$78 milhões na exportação em 2007. Com a iniciativa dos japoneses em aprimorar a tecnologia agrícola, a produção sofreu grandes mudanças, incentivando os demais produtores a buscarem novas formas de aprimoramento no que tange ao processo de produção agrícola, mediante pesquisas cientificas que se iniciaram em 1970, criando assim uma solidificação no setor empresarial da agricultura.
O processo de imigração nipônica foi tão intensa que a terceira maior colônia de japoneses encontra-se no Pará, dividida entre as cidades de Tomé-Açu, Santa Izabel e Castanhal, cidades que sempre fazem eventos em certos períodos do ano para comemorar suas produções, as datas comemorativas do Japão, etc. Como exemplo tem-se o festival do sushi que acontece anualmente na cidade de Santa Izabel. Já na cidade de Tomé Açu ocorre o festival do Bom Odori, festival muito interessante em que no final da festividade, todos se reúnem em volta de uma torre para dançar como uma forma de celebração (que não tem hora para acabar) e agradecimento por um ótimo ano que passou, a dança sendo acompanhada pelo som do taiko.
Além dos festivais, a colônia japonesa apresenta musicas tradicionais como o enka, danças como o tradicional yosakoy soran (festivais de dança realizados freqüentemente no Japão); sua percussão de tambores japoneses (taiko), além de comidas típicas que normalmente são muito apreciadas também pelos paraenses.
O melhor de tudo é que se alguém tiver interesse em conhecer e mesmo em se envolver na cultura Nikkei, basta procurar a Associação Pan Amazônica, uma espécie de representante do Japão no Pará que organiza muitos eventos tradicionais no afã de aumentar os laços entre a cultura paraense e os costumes nipônicos..

1- http://madeinjapan.uol.com.br/2009/03/07/80-anos-de-imigracao-japonesa-na-amazonia/
2- http://9dadesanimes.blogspot.com/2009/09/para-celebra-80-anos-de-imigracao.html

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Ucrânia Revisited



Por Filipe Oliveira

Como internacionalista que sou sempre tive interesse pelo Leste Europeu, seja pela sua suntuosa trajetória histórica e cultural ou por sua importância estratégica para a Europa, e um dos países que mais me desperta atenção é a Ucrânia, que atualmente se encontra em um impasse político pela sucessão presidencial.
Classificada como pertencente aos países do Segundo Mundo por Parag Khanna (2008) *1, a Ucrânia sempre esteve no dilema quanto ao seu papel geopolítico: se seria a fronteira do império russo rumo a Europa (como a própria etimologia da palavra ‘Ucrânia’ em russo sugere *2) ou uma ponte entre a Europa e a Rússia.
Sua posição estratégica, longe de ajudar, tem sido uma sina para o povo ucraniano e parece se refletir em muitos aspectos daquele povo. Divida pelo rio Dnieper, este país carrega duas partes distintas dentro de um mesmo território: a porção católica e agrícola do oeste e ortodoxa e industrializada do leste.
Mesmo na parte mais desenvolvida do país ainda há uma forte carência de modernização industrial e melhoramento da infra-estrutura, que misturada com a alta concentração de renda compromete o desenvolvimento do país. Ademais, a aglutinação de investimentos estrangeiros na capital e grande atuação de bazares que comercializam através de escambos, a margem de toda e qualquer tributação, são alguns sintomas de uma economia fragilizada. Para se ter uma idéia, uma parte considerável da população depende da remessa de mais de 3 milhões de ucranianos que vivem na Europa Ocidental.
Por outro lado a fragilidade das instituições democráticas se reflete na política do país, que apresenta uma incongruência quanto aos objetivos e projetos políticos desenhados para a Ucrânia.
Leonid Kuchma que permaneceu no poder por 10 anos (1994-2004) manteve o que Khanna (2008) e Way (2005) chamam de Soft Autoritarism , bem ao modelo da Ásia Central, com restrições a liberdade de imprensa e algumas brechas democráticas.
Seu indicado à sucessão presidencial Viktor Yanukovich, pró-russo, concorreu com Viktor Yuchenko, líder da oposição. Durante as eleições Yuchenko foi envenenado com dioxina, porém conseguiu sobreviver ao atentado. A oposição acusou os russos de terem planejado o ato.
No auge do conflito entre as forças de segurança de Kuchma e manifestantes a favor de Yuchenko, a população saiu as ruas com bandeiras cor de laranja, assegurando deste modo a anulação do resultado pela Suprema Corte e a convocação de novas eleições . O evento ficou conhecido como Revolução Laranja.
No entanto o que parecia ser o alvorecer de um governo de mudança foi na realidade a continuação dos problemas enfrentados pelo país. Yuchenko colocou pessoas despreparadas para altos cargos no governo e não conseguiu realizar as reformas constitucionais no país. Para piorar, a situação econômica ucraniana se agravou, aprofundando ainda mais as contradições sociais do país.
Nas eleições realizadas no início deste ano a rejeição popular a Yuchenko se revelou nas urnas, uma vez que conseguiu apenas 5% dos votos. O segundo turno foi disputado pela empresária e pró-ocidental Yulia Tymochenko, que permaneceu no cargo de primeira-ministra até 2005, e pelo candidato pró-russo Viktor Yanukovich. Este ganhou por 49% contra 45,5% de Tymochenko.
Agora a ex-primeira ministra recorre à Suprema Corte contestando o resultado das eleições, que segundo ela foram fraudulentas. Apesar disso, a OSCE (Organização de Segurança e Cooperação na Europa),que também inclui União Européia, EUA e Rússia, alega transparência durante o processo eleitoral.
De todo modo, o novo governante terá importantes desafios durante sua gestão especialmente na dissolução de gabinetes paralelos, rompimento de monopólios, saneamento do sistema bancário, geração de empregos, dentre outros, para que o país possa sair da sombra dos russos e se beneficiar com uma possível entrada no bloco europeu e os subseqüentes investimentos da UE.
Ao que tudo parece, este ainda permanece sendo um sonho um tanto distante, uma vez que muitos países da comunidade européia temem perder grande parte dos seus subsídios agrícolas que seriam destinados à superação da enorme dependência agrícola ucraniana. Ademais a grande maioria da população deste país é jovem, o que pode proporcionar uma avalanche de trabalhadores da Ucrânia para os demais países do bloco. Por enquanto só nos resta aguardar pelos próximos capítulos e torcer para que os brados de glória e liberdade entoada no hino nacional ucraniano voltem a sorrir à nação dos Cossacos.



NOTAS
1.Khanna define os países de segundo mundo como Estados importantes geopoliticamente para o equilíbrio de poder entre as superpotências do século XXI, EUA, União Européia e China, e que possuem características distintas dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos.
2.No idioma oficial Ucrânia significa “pátria” enquanto que na língua russa esta palavra significa “terra de fronteira” (KHANNA, 2008)

*Para ler mais sobre os países do Segundo Mundo leia “O Segundo Mundo” de Parag Khanna da Editora Intrínseca, 559 pgs.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Em busca do tempo perdido


Por Patrick Brandão

“Durante muito tempo costumava me deitar cedo. Às vezes mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar; adormeço, e, meia hora depois despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela. Durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões haviam assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro, uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V...”
É assim que começa “No caminho de Swann”, de Marcel Proust, o primeiro volume do magnífico romance “Em busca do tempo perdido”. Esse é o começo da grande viagem pelos caminhos do coração, o caminhar na estrada da busca da memória afetiva e suas veredas infinitas. A partir de “No caminho de Swann”, encontraremos inúmeros personagens vivendo histórias de amor, inveja e ciúmes, na França da Belle Époque, com uma narrativa constituída de detalhes que passam ao painel e do painel ao detalhe, sem fazer projeções definidas, e no constante reajuste de algo que nunca será perfeitamente ajustado. No momento em que “caminharmos” nos caminhos de Swann, encontraremos cenas e figuras memoráveis de soberbos personagens, cheios de vida interior que nos impressionam a cada atitude. Marcel Proust costumava definir sua obra como uma catedral em processo de construção, pois, apesar do processo rigoroso de construção, fica sempre inacabada por causa dos detalhes que devem ser acrescentados ao longo do tempo, e assim foi em sua obra, já que seu projeto inicial incluía somente três volumes, mas a obra foi crescendo por suas exigências, e a cada revisão da obra havia um novo acréscimo.
Tal como um poema, não conseguimos resumir a história sem o prejuízo da mesma, tal o feitio das frases, a modulação das vozes, a inteligência do texto de Marcel Proust. “Em busca do tempo perdido” faz com que mergulhemos no esplêndido retrato da sociedade de uma época, entramos no universo da burguesia francesa, conhecendo as divergências entre nobres e burgueses, e essas são apenas algumas satisfações que teremos em nossa leitura, mas há muito mais nesses caminhos. “Em busca do tempo perdido” é um grande exercício de memória, aonde uma recordação gera outra. Imaginemos um dia qualquer de nossas vidas já distante, um dia com os amigos, na praia. Quais eram as cores desse dia? Qual a consistência da areia em nossos pés? Com quem conversamos, e qual foi o assunto? A análise que Proust faz de todas essas coisas consideradas “perdidas” é impressionante. Com uma riqueza de detalhes, Marcel Proust nos leva àqueles dias distantes que supostamente esquecemos, e assim se dá a epifania; a reconstituição minuciosa de um tempo passado não no exterior, mas dentro da própria mente, trabalhando o fluxo de consciência de forma magistral.
Em “No caminho de Swann” que é constituído de três partes: na primeira parte, a ação passa-se na fictícia e mítica cidade de “Combray”, vemos a infância do Narrador, suas recordações da cidade, despertadas por Madeleine, sua aflição nas noites à espera de um beijo de despedida da mãe, a descoberta dos dois lados, ou caminhos, da cidade que, para ele, além de opostos, são caminhos inconciliáveis; o caminho de Swann e o caminho de Germantes. Na segunda parte, “Um amor de Swann”, Proust analisa o amor e o ciúme masculino através da relação de Charles Swann e Odette de Crécy. Na terceira parte “Nomes de Lugares”, o Narrador começa a descobrir a magia que oculta-se através dos nomes das pessoas e das cidades, vemos os brinquedos do Narrador com Gilberte, filha de Swann e Odette, e depois, sua admiração pelos pais dela, principalmente pela Sra. Swann. Em “À sombras das raparigas em flor”. O lirismo é a característica principal. O Narrador já adolescente, começa o livro narrando um jantar em família onde o convidado de honra é o diplomata Norpois. Comenta-se à mesa acontecimentos de Estado, arte e o fato de o rapaz ter ido à peça Fedra com a atriz Berma, alter-ego de Sarah Bernhardt, que ele sonhara tanto ver no palco e que afinal o decepcionara. E a decepção com o tudo o que é idealizado é muito forte nesse romance. O adolescente conhece as moças do “pequeno grupo”, na estância balneária de Balbec, local onde passa suas férias; fica tremendamente apaixonado por uma delas, chamada Albertine, integra-se ao grupo. Nesse momento, Proust começa a esboçar os temas subseqüentes da obra, prefigurando os dramas que aparecerão em livros futuros. Em “Sodoma e Gomorra”, o Narrador penetra no universo infernal da inversão sexual, tanto masculina (Sodoma), quanto feminina (Gomorra), e pela primeira vez aborda o tema do amor homossexual, e também examina a forma destrutiva do ciúme sexual, mostrando certas conseqüências que sofrem certos indivíduos que padecem desse problema. O Narrador começa a pensar em livrar-se de Albertine, mas acaba amando-a cada vez mais, e tenta impedi-la de ser contaminada pelo mundo de depravações, mantendo-a seqüestrada em sua companhia. Em “A prisioneira”, enfoca a vida em comum entre o narrador e Albertine. Uma relação amorosa cheia de contradições, onde coexistem o ciúme mórbido, avassalador e exclusivista, e também, a total indiferença. Em contrapartida, ele é incapaz de se libertar da obsessão por Albertine, e ao mesmo tempo enfastiado pela sua presença, ele sabe que tudo está perdido e, sem querer admitir a separação, mantém Albertine virtualmente prisioneira. Porém, Albertine retira-lhe das mãos o poder de decidir sobre o destino de ambos. É um magnífico estudo das relações desenvolvidas entre homem e mulher. “A fugitiva” é a continuação, e não narra propriamente a fuga de Albertine, pois, com ela encarcerada simboliza o desejo de posse do ser amado, e narra a mágoa do Narrador pelo abandono, e de muitas coisas que acreditava. Em “Tempo Redescoberto”, encontramos o retrato da corrupção trágica de todas as coisas, ou seja, pessoas que o Narrador julgava amar voltaram a ser simplesmente nomes, como outrora, tudo o que foi buscado e acreditado havia se desfeito, e a vida não passava de tempo já desaparecido.
A obra de Marcel Proust é extensa e muito gratificante, cercada de detalhes que dão vida a todos os personagens e lugares citados nos romances, e essa é uma característica marcante em sua obra. O cuidado, a análise, a memória, e sua dedicação a literatura. Proust nasceu em Auteuil, Paris, em 10 de julho de 1871. Foi uma criança de saúde frágil, e precisou de muitos cuidados durante toda a sua infância. Freqüentou o Lycée Condorcet entre 1882 e 1889, e alistou-se como voluntário em um regime de infantaria. Ingressou na École dês sciences politiques. Preparava-se para seguir carreira diplomática, mas desistiu de tudo, a fim de dedicar-se exclusivamente à literatura. Suas primeiras experiências literárias datam de 1892, quando com alguns amigos, fundou a revista Le Banquet. E também passou a colaborar em La Revue Blanche, freqüentando ao mesmo tempo os salões aristocráticos parisienses, e os que foram, em grande parte, um ótimo laboratório para coletar material para seus romances. Com a morte da mãe em 1905, torna-se herdeiro de uma fortuna razoável e isola-se cada vez mais dos meios sociais para dedicar-se exclusivamente para a sua obra “Em busca do tempo perdido”, que foi publicado entre 1913 e 1927. Marcel Proust morreu em Paris em 18 de novembro de 1922, deixando um legado importantíssimo para a posteridade.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Balada de Frederico


Por Raphael Carmezim

Soneto à Federico

Torpes gemidos vagueiam e gritam
Ao som da gaita minhota galega
Desafinadas, sangrentas veredas
Deixam Granada “Asquerosa” e vibram

Nos corpos, cópulas: vates e tísicos
Os fuzilados pagãos, torpes réprobos
Do Céu: o Deus nacional com seus méritos
Fazem do homem delírios de místicos

Mas onde está o cancioneiro gitano?
E esse marulho de balas e choros?
É um cheiro pútrido: secos antolhos
Espatifados pelas mãos de Franco

Ò Federico! Teus restos encerram
O Paraíso ao enjeitado homem
Aos que não tem coragem e fome
Para viverem seus mortos que velam

Á Andaluzia a poesia com memória
Vate cigano; sangrento punhal
Grandes errantes perseguem tua Nau
No Firmamento de versos de glória


Ao saber da forma que morreu Garcia Lorca, não pude deixar de transmutar tudo num panorama estético. Morrer sob a égide de um governo centralizador certamente por “subversão” ou simples antipatia, significa mais do que política (e isso ainda mais no caso do Poeta): significa a morte pelo que se é. Garcia - não apolítico - mas político humanista, o que transcende coalizões partidárias, programas de governo e correlatos. De fato, ele tornou-se um símbolo apropriado pela propagando falangista: foi martirizado. E quão inconcebível é a um poeta morrer na fogueira fitando o céu, com sorrisos de profeta. Lorca sabia de duendes, de cosmogonias, de universos que cabiam entre folhas de vasos nos quintais das casas; com aranhas nos vitrais sacros, com conversas no remanso das ervas. Penso que Lorca poderia ter pensado em uma formiga mais do em Deus, e isso seria suficiente para amar a vida, a fim de viver, a fim de suplicar aos assassinos a piedade mesma dos homens que esmagam formigas sem saber. E Lorca sumiu. Voltou à terra que lhe dera tantos versos e, embora cegado, gosto de pensar que sentiu o “tembror de estrellas” de que tanto cantou. A “vaguedad” e a melancolia própria dessa Ibéria Mística, da Granada “Paraíso cerrado para muchos”, da gente que ama o diminuto por ver nele o seminal; fez-me lavrar um soneto a fervor de Federico e tudo o mais que inspira: a sofreguidão estética dos que unem expressão artística e vida.
Decidi pelo soneto chamado de Gaita Galega ou moinheira, pouco utilizado, mas assaz tempestivo na ocasião. Elisões (sinalefas, sineréses) e adições (predominantemente diaréses) foram feitas para “enfiar” os versos em decassílabos com tônicas obrigatórias na 4º, 7º e 10º sílaba poética. Espero ter conseguido um sucesso lírico no sentido também de evocar uma imagem tão presente nos versos lorquianos, a saber, os ciganos (gitanos). A tentativa de reconstituir um pouco o episódio da noite do assassinato em versos obrigou-me a, além do soneto, compor quartetos decassílabos no formato moinheira, é claro que compartilhei alguns versos entre um e outro: o soneto é tributário do meu quarteto de gaita Galega! A princípio pensei em escrever uma ode, mas a principio também tinha em mente escrever outra coisa: algo como Lorca não desaparecido, mas enfim num mundo onde seu lirismo e metáforas gongóricas se tornassem realidade. Fica para próxima. Quem quiser pode tecer críticas, afinal eu já estou odiando esse soneto mesmo.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Diante da Morte



Por Raphael Carmezim


Diante da Morte nenhum cão ladra! Ela é a maldita ladra que não rouba, mas toma de volta, pois que se assenhoreia sem ninguém contestar (e nem que tenha foro privilegiado!). Nos escaninhos da Inominável, da Língua Preta (que tem tantos nomes), todos voltam à Igualdade sócio-econômica; o que deveria deixar-nos a nós, republicanos, democratas e civilização, tranquilíssimos. Certo? Não.
Diante da Morte se vê cada comportamentozinho oblíquo, cinzento, digo estranho mesmo. Como no jornal de hoje. Como é de praxe, algum caboclo assassinou-se (digo isso porque ele foi assassinado, mas tava andando trêbado de madrugada num lugar chamado Rua da Morte...) e estava estampando uma notícia jornalística e sanguinolenta de primeira página.
Seu cadáver obtuso, grosseiro, de gente trabalhadora, aparecia todo sequelado, arreganhado, moído e, por fim, morto, com os olhos injetados abertos como as mãos em atitude defensiva.
O negócio poderia ser assaz “normal” se não fosse um piazinho, moleque mesmo destes de bairro de gente espontânea, vergado sobre o presunto com um cell phone tirando uma foto, com close e tudo, na lata do sujeito.
Ta certo que é criança, e destas que já viram muitos mortos, e que nem a Morte escapa do lúdico e da boa curiosidade é certo também; mas que diabos é isso de tirar uma foto do sujeito estendido no chão?
Acrescem-se os adultos em volta, tipo roda de cirandar, como se o presunto tivesse pagando alguma prenda (cara por sinal); não que ele reclame, afinal, tá morto! E quando vivo não davam nem ouvido(deram foi facada!). Sem falar que o cadáver nem morrer de morte privada morre, pois que vai parar nos Orkuts e nos Youtube da vida. Eu também não reclamo, mas reflito sobre esses fenômenos que, mesmo “normais”, são interessantes.
Parece que morte é que nem sexo: é um acontecimento ritualizado que até hoje traz suas reminiscências de ritos de passagem. No nosso caso - tradição judaico-cristã - abominam-se os dois: sexo ou morte, mas em termos relativos, pois que se nem todos querem morrer ou trepar, todos querem dar uma espiadinha e fazer algumas perguntas.
Talvez por isso sejam tão populares escândalos sexuais seguidos de morte! Mas cogitações à parte, bem que nós temos um lado frenesi com a mardita. Se a morte encerra o temor, encerra a atração, a estranheza, o mistério. A cara de um morto deve ser um enigma universal, com sua pétrea formação multicor, inchada, plácida, preguiçosa.
Digo “deve” porque eu já vi moribundo, mas nunca vi morto. Nem sei o porquê falo destes, ou de seus espectadores, afinal, se a galera vê é porque alguma coisa deve ter de bom: ficar lá, vendo o fedor surgir, as gentes chorarem, os sintomas da morte pelo corpo; pode ser que nem sexo, se todo mundo faz é porque alguma coisa tem de bom, ou pode ser como um sexo que não se fez... Uma brochada. Será que as pessoas se identificam com o cadáver por ele ser um alguém “dessexualizado”? Sabe como é... p*** de morto não levanta... E convenhamos, aqui no Brasil, na verdade, até morto acaba numa boa sacanagem.
O engraçado (se há graça nisso) é que se suspeita de que o homem morto do jornal tivesse acabado de sair, em altas noites, de um inferninho...

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

História do Bené e do Borges na biblioteca Estrela




Por Raphael Carmezim

Pelas ruas da Estrela
Conheci um velho castanho
Que entre pencas de livros
Tinha o brilho dos d’antanho
Era o velho desejado
Dos saberes, sacrossanto.


Sua casa era um Aleph
Do Borges afeiçoado
Da Babel era errante
Nos Moldes dos desgraçados
Era a Sabedoria
Que lhe andava no encalço


A sua Biblioteca?
Thomas Mann mais sanatório
Era a “Montanha-Mágica”
Universo-palavrório
Esse era o Benedito
Com seus ares de filósofo


Sentado em sua poltrona
Balouçava com o amigo
Era Borges do outro lado
Parolando sobre mitos
De universos paralelos
Espelhos de tempos idos.


Labirinto dos achados
Era Hora da Estrela
Misturados, englobados
Estava Sertão Veredas
Era a obra Roseana
A Clarice eira nem beira


Um cego que ensaia o conto
Que recita os ingleses
Um velho que escreve a vida
Críticas que fazem às vezes
Da Estética nortista
À Cosmogonia dos seres


Eu ouvi os dois falarem
Línguas nunca dantes vistas
Será que era a Orbe?
Cunhada pelo artista:
“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”
Lá, nasceu e ganhou vida.


Atmosfera sinistra
Explodiu-se num rosário
Estante-eternidade
De círculo sacrário
Eles acharam o seu duplo
No infinito breviário


Entre sonhos memoráveis
De segredos inauditos
Fulgurava a besta-fera
Que abismava aos amigos
Um montava em seu dorso
Outro o honrava como Cristo


Era o Tigre imponente
De sonho rememorado
Por filósofo ensaísta
Por crítico-literário
Bené e Borges passadiços
Nos saberes mais velados.


Juntos por fim se ingeraram
Em saber o enciclopédico
Do ovo do basilisco
Á “Passagem para o poético”
Do eterno “livro de areia”
Ao fraseado da Lispector


Esses são Bené e Borges
Na Biblioteca Estrela
No universo incandescente
No céu que nos incendeia
História mais erudita
De uma prosa tão perfeita


Ao tempo em que fui cantando
Me dei por mais outro livro
Mais um da Biblioteca
Por Bené e Borges lido
Quando fui ver o que era
Era eu cantando o mito


Depois eles penduraram
Tudo na grande Babel
Eu olhei tão pequenino
Eles me olharam do céu
Me apontaram, os dois sorrindo,
A Poesia de Cordel.

Ou vai-te: o pirangueiro



Por Raphael Carmezim

Voar. Voar tépido e adejo – pendurado – por um fio de “serol” – 030 ou 010 – pulsante (lá sei vai a cabeça do motoqueiro!).
Copular com o vento, planar no firmamento, mais perto do Astro-rei.
Ostentar sua beleza de tecido, plástico, cartolina, seu rabo viperino, para todos da abóbada celeste tecida, granjeando pensamentos (olhares) sobre os seus movimentos.
E quando se fizer senhor: lutar, lutar e lutar, pois não tem raça mais nobre. A covardia passa onde? O pirangueiro vira chiste. Num vôo rasante, numa cambalhota cadenciada, por cima, por baixo, mede as forças com seu inimigo, e depois de um cumprimento válido de cabeça, sai-lhe levando os fios de vida que lhe tecem as Parcas.
Assim corre-se, num breviário de herói mítico e antológico, a existência das pipas, arraias, rabiolas, pandorgas, papagaios, curicas, candulas, tonel, cometas, pajáras, barréis, kites and pipes; cujos nomes os são, como os nomes dos Mitos, representantes de um aspecto irredutível de sua existência multifacetada.
Pois as pipas somos nós e muito mais no céu. Os velhos avatares, xamâns, de épocas montanhosas, estão lá, são elas, suas consciências e suas gingas, seu samba-rock aéreo, pois que no ar toda a história (e todo sonho) está revolvida (e revolvido) pelo vento.
Querer paganismo, querer religião mais telúrica que a das pipas? Elas se amam e se odeiam no espaço de um átimo de segundo, e ao mesmo tempo em que se acasalam visceralmente pelos rabos pavoneantes (cortando-se e aparando-se), se matam e se cortam; se imobilizam num vórtice de cola, vidro e energia cuspida, quedando-se inermes, entregando-se ao Uno espasmódico do Ser, sendo todo esse rito mediado pela mão vibrante, o olhar terrífico e o esforço orgástico da Criança.
E que espetáculo é a derrota (derrota?) destes seres alados! São espíritos que derivam dos nossos espíritos. É a sociedade desejada, que, mais por gracejo e covardia do que por qualquer outra coisa, preferimos projetar no céu, onde as coisas são claras e eternas, onde, dizia o alemão empinador de pipa: “para quem sofre, é uma alegria esquecer o próprio sofrimento”: coisas do delírio humano.
Talvez por isso, em temporada de pipa, salpique-se mais o céu dos pobres do que dos ricos, pois que uma criança pobre prefere perder-se no céu, imaginar-se voando, sem fome ou coisa que lhe valha, sem memória, imaginando-se caindo nas águas de Além-Mundo, no qual poderia alçar mais vôos e conhecer mais Firmamentos.
Mesmo derrotada (derrotada?), a pipa não sofre, pois morre com honra, e sabe que irá voltar, depois do Hades (e o inferno somos nós sim!) e pelas mãos de um sacerdote qualquer, viverá com as nuvens por outra pipa, amiga e inimiga que lhe espelhe a consciência pelo céu.
Assim diziam os velhos de outrora: eu subscrevo.
Assim discursou o velho empinador ao moleque empinador, e este sem entender nada, fez uma cara de engulho e continuou a subir sua rabiola tricolor pensando que nunca ia beber quando ficasse velho.
- Vê lá seu Chico, vô pegá aquela curica. Olha só... ela tá baxando...Vai penoso!

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Por Josy Llopes

Parte I

Um barco na imensidão

Era uma vez um barco.
Um barco na imensidão.
Os portos nos quais ele atracava,
Não aplacavam sua solidão.
O mar e o barco.
A brisa e o barco.
Nunca o porto e o barco.
Não havia um porto suficientemente equipado para as suas necessidades.
Alimentava-se um pouco de poesia num,
De calor noutro.
Partia como aportava, com o coração vazio.
Um dia descobriu resquícios de um antigo porto.
Estudou-lhe todo, minuciosamente.
O porto já havia sido desativado
E aquilo era para ele o sentido da vida.

Parte II

A imensidão do barco

O barco pequenino, muito amor carregava.
Derramava lágrimas em formato de versos por todo o antigo, desativado porto.
O barco ao porto declamava poesias!
Amava-o como coisa-viva,
Com uma imensidão que não se pode caracterizar.
O barco lia no mar os versos do morto porto.
O porto, nada respondia.
E aquele era o verdadeiro sentido da vida.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Belém, 394 anos


Por Josy Llopes

Completo 394 anos de fundação e ninguém perguntou-me o que acho de tudo isso. Diga-se de passagem, estou velha. Sim! Ossos e cabelos brancos e velhos. O que sou? Belém do Ver-o-peso, Belém das mangueiras, Belém das chuvas... Sou a Belém Geni, meu Deus! Não têm coragem de perguntar-me o que penso. Francamente!
Comecemos com a Belle Époque de minha vida. Eu fui uma Belém menina... Menina bonita e superior a algumas cidades brasileiras. Ratos a escutar-me a rouca voz... Dêem-me crédito! Os homens do governo maquilaram-me toda. De mim fizeram mulher... E fui tomando formas. Mas os homens não contentaram-se com aquele sorriso meigo. Despiram-me as vestes de seda e mancharam (ainda mancham!) minha honra. E que velha triste tornei-me! E estes gigantes filhos de concreto a expulsar minhas antigas construções!? Tornei-me uma Belém moderna.
Matinta agourou-me com seu assobio e Nazaré alertou-me. Fui sorrindo... Sorrindo... Até perder os dentes. Hoje sou Belém o que? Belém de quem? Chamam-me ainda Belém morena quando já tenho os céus de cor acinzentada. Homens hipócritas! Belém está em todos vocês! Em todos os quais embalei. Em todos que em meus seios beberam o leite do acolhimento... Não deixem-me morrer! Quero ser ainda a Belém de Euclides, com o mesmo amparo que aqui outrora encontrara. Quero contar-lhes sobre minhas memórias. Quero mostrar-lhes que por mim lutaram muitos e que por mim deve-se lutar.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Apresentação



Por Raphael Gomes.

Foi andando que não vi cair sobre minha cabeça uma manga. E sob sombras de mangueiras vi e provei O Aleph borgiano por entre retorcidos galhos e cheiros mangueantes. Deste ponto se vê todos os pontos do universo. E, vendo-os, revisitamos o mundo, Belém e a nós mesmos. E escolhemos um ponto entre inesgotáveis pontos, uns dentro dos outros, outros justapostos a uns; no número das folhas, na potencialidade das sementes.
Belém Revisited somos nós, vendo como outros viram em paráfrases de tantos outros: “o mar populoso, a alvorada e a tarde; as multidões da América, os intermináveis olhos imediatamente prescrutando-se em nós como num espelho com todos os espelhos do planeta e nenhum nos refletindo; vendo nas gavetas nosso códigos e confidências, vendo no Aleph a Terra e na Terra outra vez o Aleph, vendo o rosto e nossas vísceras, nossos rostos e vertigens e, contemplando, vemos o que nenhum homem contemplou: o inconcebível universo”.
Mas vemos e conversamos que é outra forma de vê, mediada pelo signo. O signo nosso, de gente criada com igapós, baldeações e multitudes. Cheios de luminárias e trevas, de frente a tantas intra-entre-relações. A Belém “de outrora e de hoje”, não tarda em Verdade (dogmatismos vãos), e pede de bom grado aos que tardam que a guardem.