sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Em busca do tempo perdido


Por Patrick Brandão

“Durante muito tempo costumava me deitar cedo. Às vezes mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar; adormeço, e, meia hora depois despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela. Durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões haviam assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro, uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V...”
É assim que começa “No caminho de Swann”, de Marcel Proust, o primeiro volume do magnífico romance “Em busca do tempo perdido”. Esse é o começo da grande viagem pelos caminhos do coração, o caminhar na estrada da busca da memória afetiva e suas veredas infinitas. A partir de “No caminho de Swann”, encontraremos inúmeros personagens vivendo histórias de amor, inveja e ciúmes, na França da Belle Époque, com uma narrativa constituída de detalhes que passam ao painel e do painel ao detalhe, sem fazer projeções definidas, e no constante reajuste de algo que nunca será perfeitamente ajustado. No momento em que “caminharmos” nos caminhos de Swann, encontraremos cenas e figuras memoráveis de soberbos personagens, cheios de vida interior que nos impressionam a cada atitude. Marcel Proust costumava definir sua obra como uma catedral em processo de construção, pois, apesar do processo rigoroso de construção, fica sempre inacabada por causa dos detalhes que devem ser acrescentados ao longo do tempo, e assim foi em sua obra, já que seu projeto inicial incluía somente três volumes, mas a obra foi crescendo por suas exigências, e a cada revisão da obra havia um novo acréscimo.
Tal como um poema, não conseguimos resumir a história sem o prejuízo da mesma, tal o feitio das frases, a modulação das vozes, a inteligência do texto de Marcel Proust. “Em busca do tempo perdido” faz com que mergulhemos no esplêndido retrato da sociedade de uma época, entramos no universo da burguesia francesa, conhecendo as divergências entre nobres e burgueses, e essas são apenas algumas satisfações que teremos em nossa leitura, mas há muito mais nesses caminhos. “Em busca do tempo perdido” é um grande exercício de memória, aonde uma recordação gera outra. Imaginemos um dia qualquer de nossas vidas já distante, um dia com os amigos, na praia. Quais eram as cores desse dia? Qual a consistência da areia em nossos pés? Com quem conversamos, e qual foi o assunto? A análise que Proust faz de todas essas coisas consideradas “perdidas” é impressionante. Com uma riqueza de detalhes, Marcel Proust nos leva àqueles dias distantes que supostamente esquecemos, e assim se dá a epifania; a reconstituição minuciosa de um tempo passado não no exterior, mas dentro da própria mente, trabalhando o fluxo de consciência de forma magistral.
Em “No caminho de Swann” que é constituído de três partes: na primeira parte, a ação passa-se na fictícia e mítica cidade de “Combray”, vemos a infância do Narrador, suas recordações da cidade, despertadas por Madeleine, sua aflição nas noites à espera de um beijo de despedida da mãe, a descoberta dos dois lados, ou caminhos, da cidade que, para ele, além de opostos, são caminhos inconciliáveis; o caminho de Swann e o caminho de Germantes. Na segunda parte, “Um amor de Swann”, Proust analisa o amor e o ciúme masculino através da relação de Charles Swann e Odette de Crécy. Na terceira parte “Nomes de Lugares”, o Narrador começa a descobrir a magia que oculta-se através dos nomes das pessoas e das cidades, vemos os brinquedos do Narrador com Gilberte, filha de Swann e Odette, e depois, sua admiração pelos pais dela, principalmente pela Sra. Swann. Em “À sombras das raparigas em flor”. O lirismo é a característica principal. O Narrador já adolescente, começa o livro narrando um jantar em família onde o convidado de honra é o diplomata Norpois. Comenta-se à mesa acontecimentos de Estado, arte e o fato de o rapaz ter ido à peça Fedra com a atriz Berma, alter-ego de Sarah Bernhardt, que ele sonhara tanto ver no palco e que afinal o decepcionara. E a decepção com o tudo o que é idealizado é muito forte nesse romance. O adolescente conhece as moças do “pequeno grupo”, na estância balneária de Balbec, local onde passa suas férias; fica tremendamente apaixonado por uma delas, chamada Albertine, integra-se ao grupo. Nesse momento, Proust começa a esboçar os temas subseqüentes da obra, prefigurando os dramas que aparecerão em livros futuros. Em “Sodoma e Gomorra”, o Narrador penetra no universo infernal da inversão sexual, tanto masculina (Sodoma), quanto feminina (Gomorra), e pela primeira vez aborda o tema do amor homossexual, e também examina a forma destrutiva do ciúme sexual, mostrando certas conseqüências que sofrem certos indivíduos que padecem desse problema. O Narrador começa a pensar em livrar-se de Albertine, mas acaba amando-a cada vez mais, e tenta impedi-la de ser contaminada pelo mundo de depravações, mantendo-a seqüestrada em sua companhia. Em “A prisioneira”, enfoca a vida em comum entre o narrador e Albertine. Uma relação amorosa cheia de contradições, onde coexistem o ciúme mórbido, avassalador e exclusivista, e também, a total indiferença. Em contrapartida, ele é incapaz de se libertar da obsessão por Albertine, e ao mesmo tempo enfastiado pela sua presença, ele sabe que tudo está perdido e, sem querer admitir a separação, mantém Albertine virtualmente prisioneira. Porém, Albertine retira-lhe das mãos o poder de decidir sobre o destino de ambos. É um magnífico estudo das relações desenvolvidas entre homem e mulher. “A fugitiva” é a continuação, e não narra propriamente a fuga de Albertine, pois, com ela encarcerada simboliza o desejo de posse do ser amado, e narra a mágoa do Narrador pelo abandono, e de muitas coisas que acreditava. Em “Tempo Redescoberto”, encontramos o retrato da corrupção trágica de todas as coisas, ou seja, pessoas que o Narrador julgava amar voltaram a ser simplesmente nomes, como outrora, tudo o que foi buscado e acreditado havia se desfeito, e a vida não passava de tempo já desaparecido.
A obra de Marcel Proust é extensa e muito gratificante, cercada de detalhes que dão vida a todos os personagens e lugares citados nos romances, e essa é uma característica marcante em sua obra. O cuidado, a análise, a memória, e sua dedicação a literatura. Proust nasceu em Auteuil, Paris, em 10 de julho de 1871. Foi uma criança de saúde frágil, e precisou de muitos cuidados durante toda a sua infância. Freqüentou o Lycée Condorcet entre 1882 e 1889, e alistou-se como voluntário em um regime de infantaria. Ingressou na École dês sciences politiques. Preparava-se para seguir carreira diplomática, mas desistiu de tudo, a fim de dedicar-se exclusivamente à literatura. Suas primeiras experiências literárias datam de 1892, quando com alguns amigos, fundou a revista Le Banquet. E também passou a colaborar em La Revue Blanche, freqüentando ao mesmo tempo os salões aristocráticos parisienses, e os que foram, em grande parte, um ótimo laboratório para coletar material para seus romances. Com a morte da mãe em 1905, torna-se herdeiro de uma fortuna razoável e isola-se cada vez mais dos meios sociais para dedicar-se exclusivamente para a sua obra “Em busca do tempo perdido”, que foi publicado entre 1913 e 1927. Marcel Proust morreu em Paris em 18 de novembro de 1922, deixando um legado importantíssimo para a posteridade.

2 comentários:

  1. Meus parabéns, Sr. Patrick. Dou-lhe as congratulações pelo texto tão bem colocado que o senhor escreveu. Conheço "Em Busca do Tempo Perdido" e já li vários outros comentários sobre o tema, mas nunca vi algum tão interessante. Realmente, o seu texto foi algo que fez valer a pena a visita a esse blog.

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  2. Ao menos fez com que surgisse o interesse de ler os romances de Proust. Parece-me um excelente escritor.

    Valeu...

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