segunda-feira, 19 de abril de 2010

El Tío de la mina*



Tradução livre por Raphael Carmezim

Querido Tio.

Nesta fotografia, captada no interior da mina, se destaca tua estátua de argila em meio às oferendas que te deixaram os mineiros, os quais, sentados nos troncos das árvores da galeria, mascaram a coca em tua presença; suplicando-te que lhes conceda o filão mais rico de estanho e lhes proteja das enfermidades e dos perigos. As garrafas de aguardente são para aplacar a tua sede e render-te culto, bem como para celebrar os acontecimentos e cultuar a Pachamama aspergindo álcool ou cachaça sobre a Mãe Terra para essa divindade Andina que não se vê, mas que guarda as riquezas em suas entranhas.
Se te vejo de perto, escrutando os detalhes de tua imagem, vejo que tens o nariz e a boca enegrecidos pela fumaça dos cigarros, os olhos redondos como bolas de cristal, os braços ligeiramente flexionados e o corpo coberto com misturas e serpentinas. Na realidade, se falamos com propriedade, diríamos que tens o rosto mais desfigurado que o Fantasma da Ópera e o corpo mais malfeito do que de um monstro com rabo e chifres. Talvez por isso tu vivas desterrado na zona mais sombria e profunda da mina, cujas galerias não são o reino de Hades nem o inferno de Dabtes, senão um recinto tenebroso somente conhecido pelos trabalhadores do subsolo, onde os devotos te temem mais do que à Deus e os supersticiosos te veneram mais que à Virgem da Candelária.
Por outro lado, segundo a versão católica, tu és o anjo celestial que, por haver se rebelado contra a vontade suprema de teu Criador, foi condenado a sofrer um castigo eterno entre as chamas do inferno. Mas tu, que é galardoador de malefícios e benefícios, não chegaste nem sequer à porta do Purgatório; mas preferistes amalgamarte com o Huari e o Supay da mitologia Andina; fazer-te chamar Thiula e meter-te nos esconderijos da mina, em cujas trevas instalastes teu trono e teu reino. Desde então és o dono dos minerais e o amo dos mineiros, os quais, em atitude de submissa veneração, te rendem cortesias ao entrar e ao sair da mina, tributando-te folhas de coca, cigarros e garrafas de aguardente, sem maior intenção que a de te manifestar sua fé e seu carinho, e pactuar contigo a sorte de um ritual milagroso. Não obstante tu seres ambivalente, mescla de Bem e de Mal, exerces uma influência decisiva sobre a vida dos habitantes do altiplano, de onde te atrevestes a medir tuas forças satânicas com as forças divinas de Deus.
Nas vésperas de Carnaval, os mineiros colocam oferendas eu tua cova, adornam teu pescoço com serpentinas e arrojam punhados de colares e misturas ao redor do teu trono, no qual tu estás sentado, vendo como te olham o falo largo, grosso e ereto. Depois te disfarças de Lúcifer e partes da mina, com a alegria de bailar na fraternidade dos demônios, bebendo os tragos que te oferecem as gentes e namorando as raparigas mais formosas que, em honra a tua esposa perversa (La Chinasupay), se disfarçam de diabas: botinas de saltos altos, saias curtas, blusas vaidosas e delgadas e vestidos franzidos com lagartos, aracnídeos ou batráquios.
As diabas têm máscaras com olhos saltados e pestanas largas, pômulos de granada e lábios sensuais, tão sensuais que, além de esboçar um sorriso tentador, deixam entrever fileiras de dentes engastados em pedras preciosas.
Tu bailas ao compasso da música de tambores e flautas, arrastando o ar com tua capa de veludo e teu cetro de comando, enquanto as diabas, acossadas pelos ursos e condores, flertam ao redor do Arcanjo São Miguel, ensinando o contorne das pernas e cobrindo suas tetas com suas cabeleiras recolhidas em tranças.
Teu traje de Lúcifer, que parece feito de luzes e de sonhos, é uma das vestes mais invejáveis do carnaval de Oruro, onde todos te vêem e te admiram com o mais profundo espantado. Tua capa de veludo, luxuosamente bordado com fios de ouro e prata, está adornada com víboras, lagartos de dragões; tua saia e teu peitilho, salpicado de botões, lantejoulas e cristais, tem figuras ornamentadas com deslumbrante pedraria; tuas botas e tuas luvas luzem realces de sapos, aranhas e escorpiões; enquanto as calças que levas “ao colarinho”, confundindo-se com sua vasta cabeleira, são adornos que flutuam no ar como ramalhetes de flores; tua máscara, deformada até o limite do horror, tem o nariz deformado, as orelhas pontiagudas e os dentes ferozes; teus olhos, grandes e instáveis como o de um camaleão, desprendem cores vivas durante o dia e luzes fosforescentes à noite. E para infundir medo e respeito entre os seus súditos, levas uma serpente de três cabeças entre os chifres alambicados de tua testa.
Passado o carnaval, em cujo âmbito maravilhoso te entregas por completo ao baile, ao amor e ao álcool, voltas a entrar nas trevas das minas, onde não és mais o Lúcifer, senão o El Tio protetor dos mineiros. Eles consideram-te o sincretismo cultural entre a religião católica e o paganismo ancestral, não só porque és parte de uma lenda que gira em torno da mina e seus assuntos, mas também porque és um ser mítico capaz de escravizar e liberar aos homens com teus poderes mágicos.
Ainda agora, quando volto a contemplar a tua imagem, tenho a horrível sensação de que me persegues como se fosses a minha própria sombra; às vezes estás mais perto de mim que Mefistófeles de Fausto e sinto que queres fazer-me cair em tentação, induzindo-me a cometer pecados horrorosos, dos quais não me salvaria nem a morte. Assim mesmo, no misterioso labirinto dos teus sonhos, assumo a tua imagem para falar com voz de diabo, como si de verdade existisses na realidade e não somente na fantasia dos que, acossados pelo medo e pela superstição, te imaginam mais perigoso que o dragão e mais feroz que o Minotauro, metade besta e metade humano.

Texto do escritor Victor Montoya disponível em: http://www.margencero.com/montoya/montoya_tio_film.html.

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