terça-feira, 3 de agosto de 2010

QUASE um plano de aula (Parte II)



Por Raphael Carmezin

“(...) Carlos Alberto Nunes, já falecido em Sorocaba, em 1994, com mais de noventa anos, impossibilitado por uma total cegueira de realizar seu último projeto – a tradução das cartas latinas de Erasmo – enviou-me, de São Paulo, anos a fio, romances ingleses e franceses, tratados de filosofia e livros de divulgação científica, hoje inestimáveis peças de minha biblioteca. Nos anos 70, quando era Reitor Aloysio da Costa Chaves, doou à UFPA os direitos autorais sobre o gigantesco trabalho por ele empreendido durante dez anos: a tradução completa de Platão, editada por essa Universidade durante três administrações, entre 1973 e 1980, em 11 volumes. Além disso, ofertou à sua biblioteca livros de e sobre Platão em várias línguas, particularmente em alemão – enfim, uma rica platoniana, a que não faltavam os originais manuscritos de tradução que fizera. Alongamo-nos sobre esse assunto, não porque queiramos propor à Universidade que, na base desse acervo, inicie um novo programa de preparação de helenistas. Apenas faço ver ao Magnífico Reitor a necessidade de reeditar a tradução completa de Platão, de há muito esgotada. Onde quer que vá em minhas perambulações para conferências, na Universidade do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, de Santa Catarina, em Florianópolis, do Paraná, em Curitiba, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, em Belo Horizonte, da Paraíba, em João Pessoa, ou na Universidade de São Paulo, onde quer que vá, é a mesma pergunto que ouço: ‘Quando é que a Universidade Federal do Pará reedita Platão’?
É certo que, não faz muito, ela se preparou para fazê-lo. Mandou revisar todos os volumes publicados; escoimados foram os erros, extirpadas as gralhas, organizados índices naqueles que contêm mais de um diálogo, e esse exaustivo trabalho de revisão entregue no tempo devido. Mas depois disso, não mais se ouviu falar no Platão, embora tivesse chegado à Universidade vantajosa proposta de coedição. Ignora-se, até, o paradeiro dos volumes.
Ali onde comecei a dar aulas, no Moderno, também aprendi a ensinar. É o que tenho feito na vida: aprender a aprender. Sou autodidata dos pés à cabeça. No caso da aprendizagem das línguas foi diferente. Com seu vozeirão, a cabeleira de um branco fosco, Dona Hermenegilda Tavares Cardoso, a Dona Velha, temida no quarteirão, sem papas na língua, de uma franqueza arrebatada, que administrava a sua enorme casa em estilo art noveau na Padre Prudêncio, atual Presidente Pernambuco, e estudava as línguas vivas, ensinou-me o francês também de graça. Denodada mulher, a quem designo como professora emérita: passava os dias preenchendo, com sua bela letra, cadernos como os que me dava, que continham listas de sinônimos e antônimos em francês, então, por excelência, o idioma instrumental da expressão cultural dos indivíduos, médicos e bacharéis em Direito, como os meus primos Hall de Moura, Ribamar, Sylvio e Levi, que viviam sob a sombra tutela de tia Angelina, numa casa modesta da Rui Barbosa.
A casa da Tia Angelina era a última da rua e a rua acabava rente a um capinzal onde vacarias prosperavam. De sua sala pequena, com uma estante ao canto, perto da janela, guardando os livros de meus três primos, bacharéis em Direito e magistrados, fazia meu refúgio durante alguns dias da semana, pela manhã, ao sair do colégio. Ali, naquela estante, encontrara edições francesas de a Crítica da razão pura e de O mundo como vontade e representação, além de L’évolution créatrice de Bergson, da Felix Alcan, exibindo na folha de rosto assinatura de Dalcídio Jurandir, seu ex-proprietário. De vez em quando chegava-me o cheiro das vacarias espalhadas no meio do capinzal, quase sempre ondulado pelo vento. O odor de estrume, da bosta de boi, entre vegetal e animal, um dos melhores e mais fortes cheiros, como ouviria, mais tarde, de Mário Faustino, e o gosto do guaraná solúvel Sórbilis, infalivelmente servido em cada uma dessas visitas, associaram-se à descoberta do caráter a priori do espaço e do tempo na Estética transcendental de Kant. Um dos primos, Ribamar, a mim se afeiçoou.
Estatura mediana, cabelos lisos, os olhos miúdos, mongólicos, como de muitos caboclos da região, bem moreno, mas com uma tez baça de hindu, os lábios finos cortados por leve sorriso numa cara gorducha de Buda, as mãos pequenas, Ribamar antecipava-me a clássica descrição de Sócrates por Alcebíades que leria no Banquete: a desgraciosa imagem de um Sileno. ‘Feio, és muito feio’, ouvi uma vez dizer-lhe de cara o professor de latim do então Ginásio Estadual Paes de Carvalho, Remígio Fernandez, um espanhol alto, de espessas sobrancelhas. E no seu tom lambanceiro, que havia rotinizado o insulto no tratamento de alunos e colegas, completou a apóstrofe chamando-o de Príncipe Encantador. Talvez o extravagante espanhol, que tinha lá as suas humanidades, se lembrasse, usando desse epíteto, Príncipe Encantador, de duplo sentido aplicado a quem o dirigiu, da imagem do Sileno, feio por fora e belo por dentro. No paralelo de Alcebíades, a figurinha exterior é um engodo: destapada, via-se, no bojo, a estátua de um deus. Ribamar deu-me a ver, pela primeira vez o homem por trás do indivíduo e o humano (ou o divino) por trás do homem.
Saiu de sua comarca para o posto de juiz de Direito, em Macapá. Lá teve um acesso de uremia. Ouvi contar que delirou numa audiência, proclamando, de chofre, com as palavras de Jesus em defesa da mulher adúltera, a inocência da acusada no processe em julgamento.
Depois da Odisséia e da Ilíada, veio o tempo da comoção estética abalada, com a leitura de Les misérables de Victor Hugo, primeiro em português, e depois no original, graças ao dadivoso Orlando Bitar, que me confiou (ele foi meu professor de latim no segundo ano ginasial) o catatau de uma edição gigante, letras douradas na capa e nas lombadas, profusamente ilustrada. Eis aí um dos amigos mais velhos, que me ensinou a aprende; o pouco do latim que ainda sei, devo à sua maneira de ensinar, familiarizando o aluno com os tempos primitivos buscados nos dicionários. Dava-se portanto, que certos professores tornaram-se meus amigos, valendo igualmente afirmas, na proposição inversa, que determinados amigos meus, como o Ribamar, tornaram-se meus professores, no sentido amplo da palavra. Não faltará nesta precária, lista da equiparação entre mestre e amigo, o nome de Maria Anunciada Chaves, uma ligação afetiva e intelectual de muitos anos, professora minha que foi, no Moderno, de História Geral e História do Brasil, com a particularidade de ter sido, para mim, como Orlando Bitar, um modelo vivo de didática. Nenhum dos dois, ao que sei, freqüentou cursos de didática. Aprendi a ensinar a duras penas – a ensinar e a ensinar-me...”

Um comentário:

  1. Estive já por aqui e cá estou outra vez. Belo espaço para as letras e para remover este triste índice de leitura de 2 livros/ano por brasileiro. Na Argentina, são dezoito livros/ano.
    Te convido a conhecer meus romances. Três deles estão disponíveis inclusive para serem baixados “de grátis”, em formato PDF.
    Um grande abraço e boa leitura!

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